Uma semana depois das eleições legislativas, este título pode parecer estranho. Embora ainda faltem contar os votos dos emigrantes, com a derrota do PS e o aumento da votação da direita, tudo indica que teremos um governo liderado pelo PSD e apoiado pela IL e pelo CH. Além disso, já há 48 deputados da extrema-direita com lugar garantido no Parlamento nesta legislatura e esse número ainda pode subir. Os programas destes partidos deixam antever uma governação de aprofundamento das desigualdades. É precisamente por isso que os resultados têm de ser lidos com a frieza necessária.
O que é que os resultados nos dizem?
A maior surpresa das eleições foi a enorme afluência às urnas: a taxa de abstenção foi de 33,8%, o valor mais baixo das últimas três décadas. É preciso recuar a 1995 para encontrar uma eleição onde a abstenção fosse tão baixa. A diminuição foi expressiva face às últimas eleições de 2022, em que a taxa de abstenção tinha sido de 48,6% (sendo que ainda falta apurar os votos dos círculos do estrangeiro).
A Aliança Democrática – coligação entre o PSD, o CDS e o PPM – foi a força política com mais votos. Mas a votação que obteve, contando com a Madeira – 29,49% – é inferior à soma das votações de PSD e CDS nas últimas eleições legislativas, em 2022 (30,89%). Ou seja, a AD conseguiu ganhar as eleições com uma percentagem de votos inferior à das últimas, nas quais tinha perdido para um PS com maioria absoluta.
O PS é o partido com a maior quebra: face às eleições de 2022, perdeu cerca de 486 mil votos e passou dos 41,68% obtidos há dois anos, que lhe deram maioria absoluta no parlamento, para 28,66% este ano. Por oposição, o CH foi o partido que mais cresceu, ganhando cerca de 723 mil votos e passou de 7,15% para 18%.
Os dados disponíveis sugerem que o crescimento do CH está associado à diminuição da abstenção: o aumento da taxa de participação foi semelhante ao aumento de votação do partido na maioria dos concelhos. A análise de dinâmicas de transferência de voto entre partidos requer mais dados qualitativos (que só podem ser obtidos através de entrevistas), mas há sinais que apontam para que possa ter havido pessoas que mudaram o seu voto do PS para o CH.
O que é que os pode explicar?
Ao longo da última semana, foram várias as tentativas de explicar os resultados eleitorais. Esse trabalho tem de continuar a ser feito, uma vez que ainda estamos longe de saber explicar tudo. Apesar disso, há motivos conjunturais e estruturais que ajudam a explicar a quebra tão expressiva da votação do PS e a ascensão da direita.
O desgaste de oito anos de governação do PS seria o candidato mais óbvio, se não estivéssemos a falar do mesmo partido que, há apenas dois anos, conquistou uma maioria absoluta. É, aliás, nessa maioria absoluta que se encontram fatores conjunturais que devem ter importância neste resultado: a sucessão de demissões nos primeiros meses do governo e a queda do governo por suspeitas de corrupção (independentemente da fragilidade jurídica ou conveniência política dessas suspeitas) ajudaram a reforçar a desconfiança face ao governo.
A popularidade ganha com a gestão da pandemia perdeu-se com a maioria absoluta e o receio do CH já não funcionou a favor do PS desta vez. Pelo contrário, o descontentamento das pessoas face a promessas eternamente adiadas parece ter motivado um voto de protesto. É aqui que entram fatores estruturais: o sub-investimento público sistemático, que caracterizou a governação do PS, descredibilizou a atuação do Estado. A diferença entre o investimento que era prometido no Orçamento do Estado e o que era realmente executado no final do ano foi sempre grande, mas acentuou-se nos dois anos da maioria absoluta. Depois de todas as promessas de que o mundo pós-pandemia seria diferente, os investimentos eternamente adiados parecem ter custado caro.
Nem o PSD, com uma campanha colada a nomes de má memória (Passos Coelho e Cavaco Silva) e uma aproximação ao discurso da extrema-direita em temas como a imigração, nem a IL, que continua a tentar convencer o país de que o choque fiscal não é só para os mais ricos mas só reúne com CEOs, conseguiram mobilizar o descontentamento. Quem ganhou verdadeiramente foi o CH, que cresceu em todos os distritos. E é muito difícil traçar um perfil de um eleitorado tão diverso, que abrange ex-eleitores da direita tradicional, ricos saudosistas da ditadura, mas também muitos excluídos do modelo económico dos últimos anos e boa parte dos jovens.
O que é que falhou à esquerda?
À esquerda, o Bloco ganhou votos e manteve os 4,46% que obteve em 2022, enquanto a CDU perdeu e passou de 4,3% para 3,3%; o Livre cresceu sobretudo nos centros urbanos, ficando com 3,2%. No rescaldo dos resultados eleitorais, houve quem, à esquerda, se apressasse a apontar as culpas aos partidos de esquerda – nomeadamente, ao Bloco e ao PCP – pelo insucesso em captar boa parte do voto de protesto (exemplos aqui e aqui). Os argumentos utilizados variam entre (1) BE e PCP diabolizaram os eleitores do CH em vez de os ouvir; (2) BE e PCP não perceberam (e não quiseram perceber) o descontentamento das pessoas; e (3) BE e PCP tornaram-se obsoletos e, por isso, dispensáveis.
É natural que a frustração dê lugar a reações a quente. Todos estamos desiludidos com o desfecho das eleições e a perspetiva de um governo de direita apoiado (formal ou informalmente) pela extrema-direita é angustiante. No entanto, face a um resultado tão negativo para o conjunto da esquerda, vale mesmo a pena tirar algum tempo para refletir sobre o que se passou, para que o desapontamento natural não nos faça perder de vista aspetos importantes.
O primeiro argumento é o mais frágil. Basta uma rápida pesquisa para encontrar discursos de Mariana Mortágua (aqui) e Paulo Raimundo (aqui) sobre a importância de responder às preocupações de quem se sente desiludido com a governação. Se olharmos para a campanha sem ideias pré-concebidas, o que vemos é que nenhum dos partidos de esquerda “diabolizou” eleitores e, pelo contrário, todos procuraram ir ao encontro destes.
O segundo argumento é mais subjetivo e, por isso, merece mais atenção. Parece basear-se na crença de que os votos seriam facilmente captados pela esquerda se simplesmente ouvisse as preocupações reais das pessoas. É difícil argumentar que os salários, os preços da habitação, a precariedade e o acesso a cuidados de saúde – os temas que tiveram destaque na campanha de BE e PCP – não estejam entre as preocupações da maioria das pessoas. É difícil argumentá-lo sobretudo porque é isso que as pessoas dizem, como mostram alguns inquéritos recentes. Também é difícil argumentar que não houve esforço para transmitir as propostas sobre estes assuntos, tendo em conta as dezenas de deslocações a empresas, locais de trabalho, transportes públicos, ou a participação em greves por melhores condições de trabalho ao longo da campanha, numa escala que nenhum outro partido replicou.
Há várias razões pelas quais a esquerda não é capaz de captar votos entre os descontentes. Há temas de que a esquerda tem falado há vários anos e que nunca mobilizaram uma percentagem tão grande da abstenção. É difícil achar que essa mobilização não ocorreu, também, devido aos temas que o CH abordou de forma mais agressiva – do medo da imigração e da criminalidade à perceção de corrupção generalizada – e às propostas mais sonantes – como a de agravar as penas ou a de atacar direitos dos imigrantes. É preferível que se reconheça que o trabalho que a esquerda tem pela frente neste campo é de longo prazo. É isso que a tendência de todos os outros países da Europa ocidental, à qual Portugal está a chegar agora, sugere.
Há aspetos que contribuem decisivamente para o crescimento da extrema-direita (CH) e da direita ultra-liberal (IL) face aos quais a esquerda não tem capacidade de disputa: o financiamento por parte dos mais ricos e o espaço desproporcional que ocupam nos meios de comunicação. O enviesamento do comentário televisivo, dominado pela direita apesar da sua menor representação eleitoral, já vinha de trás. Como notou Ana Drago, “qualquer partido que ocupasse o tempo mediático que o CH tomou nos últimos quatro anos, ao ser apresentado na comunicação social como o principal polo de protesto, […] duplicava a sua votação”. Apesar de BE e PCP já terem sido os partidos mais votados a seguir a PSD e PSD, nunca um partido de esquerda mereceu este tratamento privilegiado da comunicação social.
A isso juntou-se a aposta em estilos comunicacionais muito mais agressivos, tanto no ataque ao Estado, aos impostos e aos serviços públicos (do lado da IL), como no ataque às minorias (do lado do CH), contando com financiamento dos mais ricos do país. Sendo verdade que a disputa nas redes sociais é feita num campo claramente inclinado, que favorece o discurso de ódio e as mentiras ou teorias da conspiração, também é verdade que a direita apostou de forma bem-sucedida em campos onde a esquerda se atrasou, como o Youtube.
A importância da esquerda
Há aspetos estruturais que também não podem ser ignorados na análise da esquerda para lá destas eleições. Desde que Portugal saiu do programa de ajustamento da Troika, o modelo de crescimento do país e a recuperação do nível de emprego estiveram sobretudo assentes na expansão de setores de baixo valor acrescentado, como o turismo. Este modelo pode gerar ganhos no curto prazo, mas tem problemas de fundo: os baixos salários e a precariedade em que assentam o turismo e os serviços associados.
Este processo não foi independente das opções governativas. A expansão do turismo foi potenciada por uma série de políticas destinadas a atrair o investimento estrangeiro, entre vistos gold, benefícios fiscais do regime de residentes não habituais e benefícios fiscais a fundos de investimento, além da liberalização do mercado de arrendamento. Com o aumento expressivo da procura externa, os preços da habitação cresceram muito acima dos salários de quem trabalha no país.
A monocultura do turismo e do imobiliário criou emprego e ajudou a mascarar a fragilidade da economia, mas traduziu-se no fraco crescimento dos salários, num elevado peso da precariedade e numa crise da habitação que agravou o custo de vida para muitas pessoas. Ao contrário do que o PS procurou transmitir, na última década não houve nenhum milagre económico no país.
Além disso, uma década de sub-investimento crónico nos serviços públicos, com sucessivos anúncios que nunca saíram do papel, descredibilizou a atuação do Estado. É difícil convencer as pessoas de que as propostas da esquerda para o SNS ou os transportes públicos são viáveis quando a prática dos últimos governos lhes sugere que as promessas não se concretizam. A responsabilidade do PS neste processo de descredibilização do investimento público é evidente.
Isso leva-nos ao terceiro argumento referido acima: o de que os resultados de BE e PCP os tornam obsoletos, sobretudo por oposição ao Livre. Passando à frente o facto de a política ultrapassar largamente os trabalhos parlamentares e a importância da implantação que ambos os partidos têm nos sindicatos e nos movimentos sociais, há outros motivos para desconfiar desta conclusão. Nas zonas em que se concentram os excluídos deste modelo económico – periferia das áreas metropolitanas, para onde são empurrados todos os que não conseguem pagar uma casa na cidade onde trabalham, e o Algarve ou o litoral alentejano, onde os efeitos perversos da expansão do turismo são mais notórios – o Bloco obteve alguns dos seus melhores resultados.
Há razões programáticas que podem explicar esta tendência. Uma análise aos programas dos partidos permite-nos perceber que há semelhanças e diferenças importantes nas propostas. O caso da habitação é talvez o exemplo mais paradigmático. BE, PCP e Livre convergem quanto à necessidade de acabar com os benefícios fiscais para fundos imobiliários e com a necessidade de promover a construção e reabilitação pública para aumentar a oferta a custos acessíveis. No entanto, também há diferenças substanciais: BE e PCP defendem limitações à procura externa (seja de fundos imobiliários ou não-residentes que procuram casas para especular) e restrições ao Alojamento Local ou a novos empreendimentos turísticos em zonas de pressão habitacional, ao passo que Livre e PS não o fazem e optam por defender que o Estado ofereça garantias aos bancos ou financie uma parte do valor de compra das casas.
Esta diferença parece revelar uma tentativa de responder à crise da habitação sem enfrentar os interesses dos proprietários. Foi esse, de resto, a orientação da maioria absoluta do PS com o programa “Mais Habitação” (analisado pela Ana Santos aqui e pelo República dos Pijamas aqui). No entanto, dificilmente se combate a crise da habitação sem limitar de forma séria a procura externa especulativa e a expansão desenfreada do turismo que fizeram com que os preços disparassem. A verdade é que muitos dos problemas que enfrentamos são problemas de distribuição desigual dos recursos. E o combate às desigualdades – nos salários, no acesso à habitação e noutros campos – exige que se escolham lados.
É provável que a tendência para evitar estes conflitos e a abertura para negociar revisões constitucionais com PSD e IL (sem que se saiba que áreas seriam revistas e com que objetivo) tenham rendido ao Livre muitos votos ao centro e à direita, podendo ajudar a explicar uma parte significativa do seu crescimento em Lisboa e no Porto num contexto o PS sofreu um forte desgaste e em que a IL perdeu votos na capital. Também é bastante provável que esta não seja a fórmula para travar o crescimento da extrema-direita, porque não se dirige ao seu eleitorado. Mesmo com toda a reflexão e autocrítica necessárias, a importância da esquerda nunca foi tão grande.