segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Mirandismos ou a utopia da economia sem poder

Este meu comentário teve pelo menos a virtude de dar origem a uma interessante discussão sobre o poder de mercado entre um economista neoclássico liberal (Luís Aguiar Conraria) e um biólogo anarco-capitalista (João Miranda). Embora tenhamos pontos de partida teóricos e políticos diferentes, tenho pouco a acrescentar ao que Luís escreveu sobre o poder de mercado e sobre o facto deste ser sempre relativo e nunca absoluto (há alguma forma de poder que seja absoluta?). Gostaria apenas de comentar duas afirmações de João Miranda: «o post do João Rodrigues baseia-se no conceito de poder de mercado que não tem qualquer significado em economia». Se por economia entendemos a ciência económica, então estamos mal. Acrescento ao que Luís já disse mais um argumento de autoridade: mesmo dentro do paradigma neoclássico dominante, os desenvolvimentos da linha de investigação da informação assimétrica têm permitido falar e formalizar o poder, a capacidade assimetricamente distribuída para moldar os termos de uma transacção, o que confere vantagens a determinada parte dessa mesm transacção. Isto é comum por exemplo no «mercado de crédito» ou no «mercado de trabalho». Veja-se a entrada sobre poder no Novo Palgrave (dicionário de referência entre os economistas) escrita por dois dos economistas que mais têm contribuído para a emergência da chamada microeconomia pós-walrasiana. E depois existem as tradições heterodoxas (de Marx a Galbraith, veja-se o livro «Poder» recentemente editado entre nós pelas ediçõs 70). Já há muito que se abandonou a ideia de que a economia trata de questões que estão politicamente resolvidas (Abba Lerner). Posição que fez com que Samuelson declarasse há já algum tempo que seria indiferente o trabalho contratar o capital ou o capital contratar o trabalho.

Mas pode acontecer que um número talvez crescente de economistas esteja errado (o que nunca é de descartar) e que para além das suas teorias e modelos, exista uma realidade objectiva (a economia) onde «num mercado livre todas as transacções são voluntárias não havendo lugar a conceitos relacionados com o poder» (João Miranda). Eu acho que essa realidade é apenas o resultado das fantasias de João Miranda e das suas definições circulares: O que é uma transacção de mercado? É uma transacção livre. O que é uma transacção livre? É uma transacção de mercado. Problema resolvido a priori. Nem é preciso investigar ou argumentar. Os anarco-capitalistas elevam este procedimento à categoria de método. Veja-se o trabalho do economista Murray Rothbard.

Acontece que a realidade objectiva das transacções de mercado não funciona assim (sim, existe uma realidade objectiva que eu não sou pós-moderno como muitos dos meus companheiros à esquerda, eu sou realista). As transacções de mercado estão saturadas de relações de poder. O que é o poder? É a capacidade que um agente A tem, e que lhe advém por exemplo dos recursos que controla, de fazer com que o agente B siga um determinado curso de acção pretendido por A, porque caso contrário B sabe que A tem a capacidade de lhe impor um outro curso de acção que é para si muito custoso. Trocando por miúdos: qualquer pessoa que trabalhe numa empresa, sobretudo em épocas de desemprego, sabe que o poder dos patrões aumenta. Stiglitz, economista neoclássico, fala neste contexto do desemprego como um mecanismo disciplinar. O poder é sempre uma questão de grau e de contexto (estamos a falar de relações sociais). É portanto de natureza qualitativa embora alguns dos seus efeitos se possam quantificar. É um bem posicional. Uma soma positiva para um agente corresponde a uma soma negativa para outro. E existem outras definições úteis para descrever a economia. Por exemplo, a de Steven Lukes: o poder mais extremo é quando A tem a capacidade para moldar as preferências de B de forma a que este faça o que é vantajoso para A. Como entender racionalmente os investimentos empresariais nos «mecanismos invisíveis de persuasão» da publicidade, por exemplo, senão como um esforço para deter um certo grau de poder sobre as decisões de outros? Enfim, os exemplos multiplicam-se. Toda a gestão pode ser encarada como estando dedicada à criação mecanismos de poder.

Em termos mais gerais: na maior parte das transacções de mercado não se pode dizer que pelo facto de um agente ter escolhido um determinado curso de acção essa escolha tenha envolvido o seu consentimento com a estrutura que determinou as opções que lhe estavam disponíveis. O exemplo das transacções desesperadas ajuda a ilustrar o que eu estou a dizer. Há agentes que têm mais opções que outros e isso também lhes confere poder.

1 comentário:

Filipe Castro disse...

Caro João Rodrigues: o que V. escreve parece tão óbvio. Eu tenho uma dificuldade crescente em ver os neo-liberais a uma luz diferente da que olho para os astrólogos ou dos criacionistas. Acho o Blasfémias umblog tão deslocado da realidade que me divido entre o dó e uma vontade compulsiva de chamar a polícia antes que eles comecem a fazer reféns! :o)