domingo, 18 de maio de 2008

Por vezes é preciso traçar linhas

«O domínio público da cidadania e do serviço deve ser salvaguardado das incursões do domínio do mercado, da compra e da venda (. . .) Os bens do domínio público - cuidados de saúde, prevenção do crime, educação - não devem ser tratados como se fossem mercadorias. A linguagem do vendedor e do comprador, do produtor e do cliente, não pertence ao domínio público; nem as relações que essa linguagem pressupõe. Os médicos e os enfermeiros não ‘vendem’ serviços médicos; os estudantes não são clientes dos seus professores; os polícias não ‘produzem’ ordem pública. As tentativas de criar uma moldura mercantil minam a ética do serviço, degradam as instituições que a suportam e roubam a noção de cidadania partilhada de parte do seu sentido». David Marquand, cientista político britânico. O socialismo ético uma vez mais. De facto, proteger o domínio público passa também por revitalizar a linguagem, a economia moral, que exprime certos valores e normas. Esta alimenta a contestação à expansão do mercado e ajuda a preservar processos de provisão em que as necessidades contam mais do que as preferências suportadas por dinheiro. As tarefas da esquerda socialista passam cada vez mais por aqui. Alguns, seduzidos por todas as engenharias mercantis, dirão que somos moralistas e conservadores. Deixá-los. Notemos apenas como «os silêncios morais» de um certo marxismo (a expressão é de E. P. Thompson) continuam a servir bem tantos ex-marxistas. Dizem que a história caminha inexoravelmente noutra direcção: a da extensão da concorrência mercantil a todas as esferas da vida social. Estão errados. Como sempre.

3 comentários:

Diogo disse...

Para os «mercantilistas-liberais», como o João Miranda do Blasfémias, ajudar um filho (indo ao ponto de dar a vida por ele), é apenas um contrato comercial onde uma das partes será futuramente ressarcida pelo incómodo. Deve e Haver – Tout court!

L. Rodrigues disse...

E è por isso que se vê conservadores católicos a alinhar com o liberalismo, como César das Neves e o ex-blasfemo Arroja.
É a única forma de ele fazer algum sentido: haver uma vida eterna onde deves e haveres finalmente se acertam.

Anónimo disse...

Permita-se-me subscrever inteiramente o post e os comentários. Deveras impressionante a forma como a doutrina do serviço público, tal como fora erigida juridico-politicamente em França no início do século (Duguit, Hauriou), vem sendo colonizada semanticamente pela vulgata do liberalismo. A Terceira via, não obstante alguns méritos no aggiornamento do velho labour, e os usos amíude indevidos dos originais de Giddens, ilustra bem a penetração insidiosa da ética mercantil no próprio ideário socialista e tem fortes responsabilidades pela meta-narrativa globalizadora hoje hegemónica, da qual foi varrida qualquer proposta económica, política e ético-jurídica alternativas. Esquece-se, por exemplo, que a economia não é uma pura ciência de meios, axiologicamente neutra, e aceitam-se como verdades reveladas (que haveria de catalizar tecno-politicamente) os méritos da fantasmática mão invisível. Pense-se no Hayek e na sua ingénua crença num "nomos" espontâneo, gerado consuetudinariamente e avesso a qualquer regulação exógena - equiparada a uma inadmissível imposição taxinómica ao cosmos harmonioso das relações humanas (leia-se, ao mercado...), e inelutavelmente conducente à servidão. Restaria como ideal de justiça a comutatividade associada à sinalagmaticidade contratual. Quando muito, a justiça sobrevive metamorfoseada numa equidade «amiga» da eficiência, isto é, legível em termos de ganhos utilitaristas, segundo uma racionalidade puramente consequencialista.
Ainda recentemente, estudando as propostas de racionamento no acesso às prestações sociais a partir de uma perspectiva jurídico-constitucional, me dei conta das estratégias discursivas relacionadas com o tema. Na verdade, aquilo que a doutrina anglo-saxónica exproba como sendo racionamento, não passa da velha substituição do mercado pela política, na definição das regras de ajustamento da oferta e da procura, em domínios em que estão em causa necessidades fundamentais dos cidadãos e os recuros são escassos. Não por acaso o racionamento da saúde pontifica nos países nórdicos, no Canadã, na França e na itália (primeiros classificados na lista da OMS) e foi defendido entre nós por Silva Lopes. Claro que a palavra acorda memórias desagradáveis e assume na economia significados precisos. Mas no âmbito dos debates jurídico-públicos sobre a gestão de recursos globais e nacionais escassos, que devem pertencer a todos, é do regresso da justiça social e da democracia que se trata: a possibilidade de as pessoas individual e colectivamente recuperarem o domínio sobre as suas vias, em vez de se confiarem inermes à fatalista sinergia do mercado. Como sustentam alguns autores trata-se de interromper o mercado, de criar regiões decididamnete não mercantis, mesmo que tal suscite os piores apodos de conservadorismo de esquerda, de programação social, de ineficiência, etc. O que pude constatar, sem ser economista e procurando evitar a desdita do aprendiz de feiticeiro, é que os contestatários destas medidas são os defensores de um racionamento oculto, efectuado através do preço, e que recusa qualquer mediação normativa e política entre as produtoras de tecnologia médica - altamente indutoras de necessidades artificiais - os prestadores de serviços e os cidadãos. A concorrência no plano tecnológico e hospitalar, pretensamente servente da «soberania do consumidor» está bem ilustrada nos E.U.A, como sabemos.
Luis A. Malheiro Meneses do Vale