sábado, 28 de fevereiro de 2009

Réplica a quem “pensa como um economista”

Um comentário de Tiago Tavares a esta minha posta bem podia ser usado como ‘estudo de caso’ num seminário de economia institucionalista. Reparem:

1) Declara desconhecer a literatura das “variedades de capitalismo” o que é natural num economista formado no paradigma dominante. Este tópico permitiria suscitar a discussão sobre o que são normas institucionais e comparar o modo como são tratadas (ou mesmo ignoradas) pelos economistas do pensamento dominante e como são centrais na economia política herdeira de Marx, Veblen, Polanyi, Keynes, Galbraith, etc. em articulação com o que é a racionalidade humana e a versão tosca que dela apresenta a economia dominante.

2) Tiago Tavares admite que há um ideal de “economia de mercado” e que a variedade do capitalismo designada por “anglo-saxónica” estaria mais próxima desse ideal.
Pois bem, isto permitiria discutir o que são mercados e mostrar que no pensamento hoje dominante não há sequer uma definição digna desse nome (procurar na Introdução à Economia de Samuelson/Nordhaus). Partindo dessa constatação, poderíamos começar a discutir a realidade histórica dos mercados (sim, no plural). Não é que o meu institucionalismo rejeite abstracções e modelos, como Tiago Tavares sugere. Mas há modelos e modelos … e alguns não apenas simplificam a realidade mas também a mutilam, no sentido de que deixam de lado aspectos que fazem parte da natureza intrínseca do objecto estudado, acabando por elaborar uma ficção sem qualquer capacidade explicativa (ver aqui, em francês, uma discussão do conceito de "economia de mercado).

3) Tiago Tavares escusa-se a explicitar o seu ponto de partida teórico e passa aos “factos estatísticos”. Não é que eu precise de saber qual é a sua filiação teórica. Ela está bem à vista e, no último parágrafo, até indica dois autores bem representativos. O problema é que os “factos estatísticos” são apenas números, isto é, símbolos. Para seleccionar esses números já foi preciso alguma teoria. Ainda mais teoria é preciso quando, a partir desses números, se pretende entender a realidade para que remetem. O que Tiago Tavares escreveu (ou deixou implícito) sobre as economias da Alemanha e do Reino Unido está carregado de ‘teoria da oferta’ (“supply side economics”), algo que não está nos números. Mas já estava na sua cabeça quando os foi buscar. Este tópico não pode ser aqui desenvolvido, mas dava pelo menos uma aula sobre epistemologia da ciência social, assunto incontornável para um economista institucionalista mas certamente algo esotérico para o ensino da economia dominante.

4) Tiago Tavares diz que a minha posta visava “demonstrar que o capitalismo “renano” é claramente superior ao modelo anglo-saxónico”, no sentido de melhor ‘performance’ macroeconómica, ou de melhores perspectivas no que toca à actual crise. Na realidade, o meu ponto era apenas este: para os socialistas, a variedade germânica do capitalismo é mais favorável ao relançamento do processo de socialização da economia na medida em que, apesar das limitações introduzidas sob a pressão do neoliberalismo, ainda preserva a intervenção dos trabalhadores na gestão das empresas. Em Portugal, é para aí que a esquerda socialista deve apontar quando discute a questão dos despedimentos. É esse salto qualitativo que a esquerda tem de conquistar.

5) No que toca à sugestão de uma melhor ‘performance’ da economia do Reino Unido relativamente à Alemã, nos últimos dez anos, Tiago Tavares falha rotundamente. De facto, ao relacionar as diferenças nos indicadores estatísticos com a influência dos sindicatos (importante num caso, pouco importante noutro) deixou implícita a existência de uma relação de causalidade. Como já deve ter percebido, caiu num empiricismo primário. As causalidades são múltiplas, entrelaçadas e (aspecto essencial) têm de ser postuladas teoricamente porque os “factos estatísticos” apontam só para a superfície da realidade social. Esta, tal como as realidades física, biológica e humana, tem estratos não imediatamente acessíveis.

Mas é verdade que (no meio dessas múltiplas causalidades, por baixo do que os “factos estatísticos” apontam) os sindicatos e o respectivo comportamento negocial desempenham um papel explicativo importante, tal como também desempenham as políticas de gestão da procura existentes no Reino Unido (não está na zona euro!) e inexistentes/inibidas na Alemanha, os efeitos prolongados da unificação alemã, a opção do Novo Trabalhismo pelo desvalorização dos sindicatos e pelo crescimento dos serviços financeiros a partir da City, etc., etc. O entendimento científico da realidade (que nem sempre pode ser explicação causal) necessita sempre de alguma abstracção que faça sentido, às vezes através de um modelo de causalidades, e seja consistente com os tais “factos estatísticos”. Aqui vão dois exemplos: 1) esta análise institucionalista comparativa da trajectória da Alemanha e do Reino Unido, de que existe uma primeira versão acessível a todos; 2) este artigo sobre a política económica do New Labour (creio que só acessível a académicos).

Claro que a literatura das variedades do capitalismo também tem sido criticada no interior do próprio institucionalismo mas isso dava outro seminário.

Concluindo: não pretendo convencer Tiago Tavares. Os nossos paradigmas são em larga medida incomensuráveis e, por isso, não permitem a proximidade cognitiva indispensável a uma aprendizagem mútua. Ainda assim, acho que esta réplica pode ser útil aos leitores (economistas ou não) que ainda preservam alguma abertura intelectual para perceber como se pode ser socialista no século XXI.

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