segunda-feira, 28 de junho de 2010

Para lá das utopias constitucionais

Nos intervalos do bloco central, o PSD tem andado numa azáfama constitucional. Trata-se, qual plano inclinado, de levar até às últimas consequências políticas, ou seja, até à Constituição, a lógica da erosão do Estado social e da fragilização das classes populares presente na perversa política de austeridade permanente com escala europeia. É isto que está por trás da ideia, que circula por aí, de dar dignidade constitucional a limites totalmente arbitrários, como os que proibiriam um défice orçamental superior a 3% do PIB ou uma dívida pública superior a 60%.

Limites que nenhum governo democrático em tempos de crise aguda do capitalismo maduro poderá cumprir sem gerar ainda mais desemprego e exclusão. Por muito que isto desgoste os moralistas das finanças públicas, os défices e a dívida são a consequência do andamento da economia. Por exemplo, a incensada e muito liberal Irlanda, que tinha uma dívida pública de 25% do PIB em 2007, ultrapassará os 77% em 2010. É o colapso da magia do mercado a gerar os défices que nenhuma Constituição trava.

Para não ficar atrás na utopia liberal, o jurista Diogo Leite Campos, eminente ideólogo da direcção de Passos Coelho, defendeu que a passagem de um Estado democrático para um Estado totalitário só poderia ser impedida com a fixação legal de um limite para a carga fiscal. Que tal 40% do PIB, já que estamos no domínio dos números mágicos? Leite Campos já tinha demonstrado o seu conhecimento profundo do país ao afirmar que auferir menos de 1000 euros por mês equivale a ser miserável. Agora demonstra desconhecer que os Estados democráticos mais avançados, com as economias mais competitivas e solidárias - da Dinamarca à Suécia, passando pela Finlândia -, têm em comum, entre outras coisas, uma carga fiscal superior a 40%. A carga fiscal "elevada", longe de ser uma ameaça à democracia e às liberdades amplamente partilhadas, ajuda a efectivá-las. Por muito que isso custe a quem cai no último escalão do IRS.

Este é, de resto, um padrão bem identificado: as democracias mais participadas, com movimentos sindicais fortes, com maior igualdade salarial antes de impostos e confiança mais elevada nas instituições, tendem a ter Estados sociais universais mais redistributivos e impostos mais elevados e progressivos. Escolhas políticas que espevitam a inovação económica e ajudam a competitividade das nações. É que os empresários não têm alternativa. Têm mesmo de ser bons.

O país pode escolher: em vez de constitucionalizar utopias liberais que acentuam a prepotência e a indolência empresariais, mais vale seguir os bons exemplos. Definitivamente, as obsessões constitucionais alemãs, que podem bem provocar uma crise europeia, não são a referência...

7 comentários:

Ana Paula Fitas disse...

Caro João Rodrigues,
Fiz link.
Obrigado.
Abraço.

Anónimo disse...

A Constituição poderá não travar o deficite, mas os credores podem!.
A proposta aparentemente tonta ou de quem não sabe no que há-de "inovar" só poderá ter um argumento lógico que será o dizer aos que emprestam - não tenham problemas, nós não gastaremos mais do que podemos, podem emprestar-nos sem medos-. Poderia ser qualquer coisa deste tipo, mas não acredito, é apenas treta para entreter as baratas e estas pensem(??) que estão a pensar por elas e as aliviam dessa maçada. A motivação da Alemanha ao constitucionalizar essa questão terá tido destinatários diferentes. Contra o sectarismo dos moralistas/economistas do deficite contrapõem outros a explicação igualmente fundamentalista de que tudo, tudo é apenas devido à perversão do Sistema. As baratas tontas e os dirigentes tontos que deixam desgovernar não têm pingo de responsabilidade (já nem digo culpa!) Entendam-se até à revolução mundial.

Anónimo disse...

Considerar um Estado como totalitário, se a carga fiscal ultrapassar 40%, parece uma asneira de principiante. Mereceria um belo de um chumbo numa qualquer cadeira de Introdução à Economia.

Por outro lado, institucionalizar um tecto máximo para a Dívida Pública (não para o Défice) pode fazer sentido. Um forte endividamento do Estado pode criar uma sobrecarga financeira insustentável para as gerações futuras.

Estabelecer, na Constituição, um limite máximo para a Dívida, mantendo margem de manobra para Défices Orçamentais virtuosos, seria provavelmente uma boa solução.

Luis O. Martins

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo João Rodrigues,

Subscrevo inteiramente a tua posição de que com mais do mesmo, isto é, com mais "maravilhas" neoliberais o país e a Europa afundam-se em taxas elevadas de desemprego insustentáveis com as classes médias a perderem a olhos vistos qualidade de vida! Como se compatibiliza a resposta à crise com padrões mínimos de qualidade de vida para todos se não fôr através da urgentíssima salvaguarda do Estado Social ? Sem isso, os indivíduos e os países irão cair no lema do "salve-se quem possa"...Uma estratégia francamente egoísta em que a Europa parece estar mergulhada até à medula.

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

João Aleluia disse...

1. O João Rodrigues por certo nunca viu o plano inclinado. Pois se tivesse visto sabia que neste programa não se defende a erosão do estado social. Antes pelo contrário. defende-se que precisamente porque é fundamental financiar o estado social é que as contas públicas têm que ser sustentáveis. Pois, como é óbvio, num estado em que não há dinheiro não há serviços sociais para ninguém.

Para mais, se visse o plano inclinado também sabia que os autores do programa não só não apoiam o PSD e as suas politicas, como antes pelo contrário consideram o PSD um dos responsáveis pela situação actual.

2. Quanto aos limites arbitrários, pode-se questionar o montante dos limites. No entanto tem que haver limites. O não haver limites, ou haver limites que não se cumprem está a dar o resultado que se vê.
Aliás se o problema é só ser arbitrário, então porque não se acaba com as penas de prisão? porque é que um individua que mata ou viola apanha entre 12 a 25 anos de prisão? não é também um limite arbitrário?

Quanto ao montante dos limites parece-me que 60% do PIB para o stock de divida já é um limite abusivamente permissivo. Quanto aos limites paro o défice, estes são obviamente menos importantes que os da divida. Sou no entanto da opinião que também devem existir limites para os défices, pois limita a capacidade dos governos para abusar, sobretudo em anos de eleições.

3."Limites que nenhum governo democrático em tempos de crise aguda do capitalismo maduro poderá cumprir sem gerar ainda mais desemprego e exclusão"

Pois é, mas se os governos tivessem no passado conduzido politicas orçamentais responsáveis, hoje não só não teriam de conduzir uma consolidação em tempo de crise, como até teriam dinheiro para conduzir algumas politicas económicas expansionistas.

4."Por muito que isto desgoste os moralistas das finanças públicas, os défices e a dívida são a consequência do andamento da economia"

Ena, esta afirmação merece um confronto directo com os números:

Debt Greece Portugal
2000 103,4 50,5
2001 103,7 52,9
2002 101,7 55,6
2003 97,4 56,9
2004 98,6 58,3
2005 100,0 63,6
2006 97,8 64,7
2007 95,7 63,6
2008 99,2 66,3
2009 115,1 76,8

Como se pode ver na tabela acima (Stock de divida em % do PIB, fonte eurostat) Portugal e a Grécia já estavam irresponsavelmente endividados muitos antes desta crise. Houve de facto um aumento significativo em 2009, mas como se pode constatar da tabela, a situação insustentável já vinha muito detrás. Sobre o aumento de 2009 falarei a seguir.

Olhemos agora para a Irlanda (mesmo indicador, mesma fonte):

Debt Ireland
2000 37,8
2001 35,6
2002 32,2
2003 31,0
2004 29,7
2005 27,4
2006 24,9
2007 25,0
2008 43,9
2009 64,0

Aqui de facto houve um grande salto em 2009. Terá sido por causa da crise? Porque os Irlandeses ficaram de repente todos sem rendimentos e deixaram de poder pagar impostos?

Vejamos então a receita fiscal da Irlanda (em % do PIB, fonte eurostat):


Fisc Re Ireland
2000 36,1
2001 34,2
2002 33,2
2003 33,6
2004 34,9
2005 35,6
2006 37,4
2007 36,7
2008 34,7
2009 34,1

Como se vê, a receita fiscal diminuiu apenas 2% do PIB em 2008 e 0,6% em 2009. Mas a divida aumento cerca de 20% do PIB em 2008 e quase outros 20% do PIB em 2009. A queda do PIB (cerca de 9% em 2008 e cerca de 3% em 2009) explicam em parte o aumento da divida em relação ao PIB. Mas isto não significa aumento de endividamento, significa apenas que a divida representa uma % maior do PIB. No caso de Portugal e da Grécia esta variação da base explica a maior parte do aumento do indicador. Mas no caso Irlanda, existe ainda uma grande discrepância. Porque será, já vimos que não foi pela quebra da receita fiscal?

João Aleluia disse...

A reposta está aqui (despesa em % do PIB, fonte eurostat):

Gov Exp Ireland
2000 31,3
2001 33,2
2002 33,5
2003 33,2
2004 33,5
2005 33,9
2006 34,4
2007 36,6
2008 42,0
2009 48,4

Como já tínhamos visto, a receita fiscal diminui 2% do PIB em 2008 e 0,6% em 2009, mas a despesa governamental subiu 5,4% do PIB em 2008 e 6,4% em 2009. Isto significa que o buraco orçamental aumentou 7,4% do PIB em 2008 e mais 7% em 2009. Como está bem patente nos números, foi por causa do governo e não por causa da crise que as contas Irlandesas se deterioraram.
Mais interessante ainda é consideramos o porquê deste aumento da despesa. Provavelmente este deve-se ao facto de os políticos irlandeses partilharem das ideias do João Rodrigues, de que se estamos em recessão devemos implementar politicas expansionistas cegas e gastar muito dinheiro para a economia crescer pelo consumo. E como seria de esperar o resultado está à vista. A Irlanda não conseguiu sair da crise, por mais dinheiro que gastasse, mas conseguiu sem duvida colocar o pais numa situação de quase insolvência que será paga e sofrida pelas gerações futuras.

5."Por muito que isso custe a quem cai no último escalão do IRS."

A esses não custa nada, porque esses não pagam impostos.

Quanto aos exemplos nórdicos, não me importava de pagar uma carga fiscal superior a 40% se tivesse educação de qualidade gratuita, saúde de qualidade gratuita, um sistema de justiça que garante os meus direitos e não dificulta a minha pessoal e profissional, etc...

Não é justificável pagar o nível de impostos que a classe media (cada vez mais em vias de extinção) paga actualmente quando vivemos num estado falhado.

6. "É que os empresários não têm alternativa. Têm mesmo de ser bons."

Que disparate. Os países nórdicos são muito mais avançados que nós em todos os aspectos e têm geram muito mais incentivos à inovação e a concorrência no sector privado do que os PIIGS. Mas não são de modo algum economias isentas de subsidio-dependência, de corrupção e de proteccionismos abusivos de algumas empresas e industrias.
Os empresários de lá têm de ser melhores que os Portugueses, daí até terem que ser bons vai uma grande diferença.

Zé Inácio disse...

Só agora li. Mas quando ouço ou vejo um "facho" como o Leite Campos a falar em estado totalitário só me posso rir. Mas essses gajos por acaso pensam que a gente não lhes conhece a "Ficha"?