sábado, 8 de outubro de 2011

A crise (adiada) do neoliberalismo - parte I

(Republico aqui, em fascículos, o meu contributo para o anuário JANUS 2011-2012)


O actual colapso financeiro é para o fundamentalismo de mercado o que a queda do muro de Berlim foi para o socialismo real – ou seja, transmite ao mundo a mensagem de que se trata de uma forma de organização económica insustentável. Este foi, em Setembro de 2008, o modo encontrado pelo Prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz para exprimir o que era na altura uma visão largamente consensual sobre a crise financeira em curso. Tudo indicava que se estava então perante um momento de viragem histórica, que conduziria necessariamente a um novo modelo de desenvolvimento económico e social. Mais de três anos volvidos, a leitura dificilmente pode ser idêntica.

O fundamentalismo de mercado constitui a doutrina central do modelo de desenvolvimento económico e social que dominou o mundo ocidental (e não só) nas últimas três décadas e que dá pelo nome de neoliberalismo. A crença de que o funcionamento dos mercados com o mínimo de interferência dos Estados constitui a melhor forma de resolver os problemas económicos e sociais ganhou peso na sequência das crises da década de 1970. A privatização de empresas e serviços públicos, a desregulação dos mercados de trabalho e das actividades produtivas em geral, e a liberalização dos movimentos internacionais de mercadorias e capitais, constituiram desde então a pedra-chave dos programas de reforma dos governos em grande parte do mundo.

Um equívoco recorrente consiste em confundir neoliberalismo com a redução do peso do Estado na economia. Como nos revelam os dados sobre a evolução da despesa pública primária em percentagem do PIB nos EUA – um dos países onde se levou mais longe a lógica de privatização, desregulação e liberalização – o peso do Estado manteve-se essencialmente constante ao longo das últimas décadas. Na verdade, na era neoliberal o peso do Estado aumentou temporariamente em alguns períodos, reflectindo os esforços dirigidos à indústria de armamento (no período da chamada «Guerra das Estrelas» na primeira metade da década de 1980 e durante a invasão do Iraque no início do novo século) ou a desaceleração cíclica do crescimento económico.


(Nota: um comentário de um leitor chamou-me a atenção para o facto de o gráfico que tinha originalmente
introduzido não corresponder ao título do mesmo, nem à referência que faço no texto.
Substituí pelo gráfico correcto. Ficam aqui os meus agradecimentos ao leitor.)

(Continua.)

4 comentários:

Anónimo disse...

"na era neoliberal o peso do Estado aumentou temporariamente em alguns períodos, reflectindo os esforços dirigidos à indústria de armamento"...
"invasão do Iraque no início do novo século "

Caro Ricardo Paes Mamede,
peço-lhe que me explique com base no gráfico exposto a afirmação atrás citada.
obg



j

Anónimo disse...

Então a despesa pública nos EUA é pouco mais de 20%. Isso é uma nova série cronológica? Ou nova metodologia para o cálculo?

Ricardo Paes Mamede disse...

Caro j,
O gráfico revela o crescimento da despesa pública primária em períodos de grandes investimentos do governo federal americano na indústria de 'defesa'. Na literatura económica isto ficou conhecido como keynesianismo de guerra. A receita mão é original - por exemplo a guerra da Coreia é vista por muitos como uma resposta à desaceleração da actividade económica após o fim da 2a Guerra Mundial. Como alguém disse, a guerra é a forma de transformar o imobilizado em consumível. Por outras palavras, é a forma da direita conservadora pôr as ideias de Keynes em marcha sem ter de reconhecer a sua razão.

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo Ricardo Paes Mamede,

A crise adiada do Neoliberalismo, apesar da hecatombe financeira de 2008, não estará relacionada com o crescente poder dos multimilionários e com o esvaziamento de poderes efectivos dos cidadãos resultante do definhamento das democracias do Ocidente ?

Excelente observação de que os EUA apesar do seu ultra neoliberalismo levou o Estado a endividar-se com esforços absurdos de guerra em territórios estrangeiros.

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt