sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O momento em que tudo mudou

Evolução da Euribor a 6 meses. 
Sim, a culpa do que estamos a viver continua a ser da crise financeira. Sim, a culpa continua a ser dos produtos financeiros que, sob o pretexto de proteger os investidores da instabilidade dos mercados, a aumentam exponencialmente. E sim, continuamos a falar de contratos SWAP.

A evolução das taxas Euribor dos últimos anos dá-nos uma visão de contexto do que terá acontecido*:

Entre 2005 e 2008 as Euribor subiram de valores da ordem dos 2%, para valores que chegaram a ultrapassar os 5%. Claro que quem tinha contratos indexados a estas taxas, viu os seus custos aumentar e não é estapafúrdio admitir que alguns gestores públicos que contrataram os SWAP se estivessem realmente a tentar proteger de novas subidas. Mas estes gestores parecem ter-se esquecido da lei popular que estipula que tudo o que sobe, mais tarde ou mais cedo, tem de descer. E essa previsão nem sequer era muito difícil de fazer, a partir do momento em que o mercado começou a funcionar acima da média de longo prazo do mercado que foi de 3,26% entre 1999 e 2007.

Os gestores públicos assinaram contratos que seriam fortemente penalizados no momento em que essa descida acontecesse. É um daqueles milagres do mundo financeiro em que uma descida das taxas de juro se vira contra os devedores e os faz pagar ainda mais pelos seus financiamentos do que se as taxas de juro tivessem subido…

No final de 2008, as taxas de juro colapsaram e as empresas públicas portuguesas ficaram com uma conta astronómica para pagar. Claro que rapidez da descida e os valores atingidos pelas taxas eram difíceis de prever e pioraram muito a situação, mas a verdade é que a probabilidade de descida sempre existiu e o risco foi assumido assim mesmo.

Nada justifica que estas empresas tenham utilizado dinheiros públicos em produtos complexos especulativos. Mas, para além disso, olhando para a evolução dos números, o desfecho negativo nem sequer era assim tão difícil de adivinhar nem por estes gestores, que foram no mínimo incompetentes, nem pelos bancos que lhes proposeram os contratos…


* Continuamos a falar do que terá acontecido porque, como não me canso de lembrar, estes contratos e os relatórios na base da sua análise, continuam a ser classificados e desconhecidos dos contribuintes que os pagam.

A partir de hoje nas livrarias

«Os resultados da aplicação do programa da Troika em Portugal nos dois últimos anos estão à vista de todos: desemprego maciço, aumento das desigualdades e da pobreza, instabilidade pessoal e social, emigração forçada, falências de empresas. Alguns insistem em ver nestes sinais os custos inevitáveis de um processo de ajustamento necessário, transitório e essencialmente correto. No entanto, é hoje claro que aquela estratégia falhou nos seus próprios termos: as metas de redução do défice orçamental foram sucessivamente adiadas e a dívida pública é hoje mais insustentável do que em 2011.
Este livro procura demostrar que o programa da Troika não resolve – antes agrava – as dificuldades que começaram a avolumar-se há duas décadas e que conduziram Portugal à situação presente. Assim, construir alternativas à estratégia da Troika é fundamental para inverter o atual círculo vicioso de degradação social, económica e democrática. Mas também para construir um modelo de desenvolvimento para o país que seja económica, social e ambientalmente sustentável.»

O que conduziu a economia portuguesa à crise? O que levou Portugal a pedir a intervenção da Troika? Em que consiste o programa acordado com a Troika? Depois de tantas alterações, o Memorando ainda é o mesmo? Que consequências teve a implementação do programa da Troika até aqui? O programa da Troika resolve os problemas da economia portuguesa? Quais as implicações deste programa para o futuro de Portugal? O «regresso aos mercados» é o fim do programa da Troika? Quais as alternativas ao ao programa do governo e da Troika?

Em nove perguntas-chave, a que são dadas respostas em nove capítulos, procuram-se compreender as verdadeiras origens da crise e o significado e impactos do memorando da Troika, bem como equacionar as estratégias e cenários alternativos que permitam inverter a queda no abismo do empobrecimento e da ruptura social. Um livro que nasce no seio das preocupações e actividades do Congresso Democrático das Alternativas, um movimento cívico de intervenção política não‐partidária, que reúne cidadãos de diferentes orientações políticas, com e sem partido, apostados na construção de denominadores comuns nas opções de política pública e nos processos de acção coletiva que fundamentem, deem força e credibilizem alternativas políticas de governação. A expectativa dos autores deste livro é que o mesmo contribua para gerar as convergências e a mobilização cívica necessárias para resgatar Portugal para um futuro decente.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Rigidez ideológica

Ponto da situação sobre mais uma folha Excel da nossa austeridade: a troika quer, o governo e o banco que não são de Portugal sonham, os dados “parciais” nascem e a fraude da rigidez laboral mantém-se. O uso da expressão “rigidez laboral” indica, desde logo, que estamos em presença de uma manipulação ideológica, cujo objectivo, agora confessado, sempre foi o de transferir rendimentos do trabalho para certas fracções do capital, as que prosperam em tempos de crise de procura causada pela política de austeridade, a grande responsável pela colossal subida do desemprego nestes últimos anos.

Entretanto, deixo uma pergunta singela: por que é que se usa a expressão rigidez laboral para caracterizar uma situação em que ainda existem direitos laborais e correspondentes obrigações patronais e não se usa a expressão rigidez patronal, ao invés da expressão flexibilidade, para caracterizar uma situação em que existem demasiados direitos patronais e correspondentes obrigações laborais?

Seja como for, a sabedoria convencional tem, aqui e agora, dois lados: temos os que dizem, como o FMI, que é preciso continuar a mexer numa legislação laboral, que será sempre demasiado rígida, para continuar a descer salários – se há desemprego só pode ser porque os salários são demasiado elevados – e temos os que acham que a economia portuguesa já exibe uma grande “flexibilidade” laboral e salarial e que por isso já está em melhores condições para sair da crise. Ambos os lados, concordam que a rigidez patronal é boa, discordando apenas na avaliação que fazem da economia portuguesa.

E depois temos os que, por exemplo, por aqui têm dito que a chamada “rigidez laboral” não só não é responsável por um desemprego gerado pela austeridade, como é virtuosa, da contratação colectiva, a despedimentos legal e pecuniariamente custosos, passando por subsídios de desemprego decentes ou por salários mínimos em actualização real e que evitem a pobreza laboral: reequilibra as relações laborais, ajuda a combater a desigualdade, dificulta a transferência de custos sociais para os trabalhadores, penalizando os empresários medíocres, gera estabilidade que motiva e incentiva à formação, faz com que se pense duas vezes antes de se despedir, dificulta a redução dos salários e a correspondente quebra da procura, obstaculizando os círculos viciosos intensos, ainda para mais quando à quebra de rendimentos se junta o endividamento prévio e logo a insolvência.

Subjacente a esta visão está a superação da narrativa do mundo do trabalho visto pelo prisma de um mau manual de introdução à microeconomia, o que fala do trabalho numa lógica da batata e de supostas leis de oferta e procura. Falar de “mercado” serve apenas para ocultar as lógicas da assimetria de poder e da compulsão nas relações laborais, o desemprego como mecanismo disciplinar, o medo, a desmotivação, a desqualificação, os círculos viciosos da crise e da pobreza laboral, a falácia da composição visível em patrões que podem ser tentados a cortar nos salários dos “seus colaboradores” ao mesmo tempo que se queixam de que a quebra das vendas impede o investimento, apenas porque demasiados têm a mesma tentação. Felizmente, há bons manuais que abordam algumas destas coisas.

Sinais?

Num comício ontem realizado em Rendsburg, no norte da Alemanha, Angela Merkel defendeu que «a Grécia nunca deveria ter entrado na zona euro», associando os actuais problemas com que a Europa se confronta à permissão de entrada daquele país na zona monetária, a par da ideia de que o Pacto de Estabilidade foi, na sua génese, um pacto «fraco». E num esforço acrescido de clareza, a chanceler acrescentou: «temos que mostrar solidariedade, mas é preciso que ela esteja também sempre associada a reformas nestes países». Sim, a solidariedade de quem amealhou 41 mil milhões de euros desde 2010 com a suposta crise das dívidas soberanas.

Na terça-feira, numa entrevista a um diário alemão, o presidente da Federação da Indústria Alemã (BDI), Ulrich Grillo, propunha, qual abutre, que Atenas transferisse parte do seu vasto património nacional para o fundo de resgate europeu, que poderia assim vendê-lo para cobrar dívida e se financiar. A proposta não chega a ser tão obscena como a formulada pelos deputados alemães Josef Schlarman e Frank Schäffler (da CDU e do Partido Democrático Liberal, respectivamente), que em 2010 defenderam que Atenas deveria vender algumas das suas ilhas, para abater dívida pública (situada então em 110% do PIB). Para Grillo, bastaria que a Grécia alienasse hoje parte do seu património nacional, no valor de várias centenas de milhares de milhões de euros, como «é o caso, por exemplo, de empresas do setor da energia, portos, aeroportos ou imobiliárias».

Juntando a estas as recentes declarações do presidente do eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, quanto à necessidade de aplicar um terceiro resgate a Atenas, a nebulosa de afirmações que assim se produz parece mostrar pelo menos duas coisas: que a eurocracia predadora não aprendeu (quererá aprender?) rigorosamente nada sobre a calamidade política, social e económica a que a sua receita de austeridade está a conduzir; e que podem eventualmente estar a ser dados os primeiros passos do processo de expulsão da Grécia da zona euro. Dois sinais a que Portugal deve, obviamente, estar atento. Objects in the mirror are closer than they appear?

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Quem é quem?

"O PIB real contraiu à volta de 6% em 2011 e é esperado que tenha caído quase 20% em 2012. O relatório esperava uma nova queda de 5% em 2013" - Aqui.

"A redução cumulativa do PIB desde 2008 é de quase 20% e espera-se que chegue aos 25% em 2014." - Aqui

O Excel da nossa austeridade


O FMI publicou gráficos para retratar a evolução dos salários em Portugal e defender a importância de mais cortes no sector privado que partem de uma amostra deturpada. Da base de dados usada foram eliminadas milhares de observações que davam conta de um aumento significativo do número de reduções salariais em Portugal no ano passado, sabe o Negócios. Os resultados deste procedimento facilitam a argumentação a favor de mais flexibilidade laboral (…) Os dados divulgados estão (…) errados, subestimando a dimensão das reduções salariais registadas na base de dados da Segurança Social, apurou o Negócios junto de várias fontes. A instituição internacional já sabe do problema com a amostra. E diz ao Negócios que se limitou a usar informação fornecida pelo Executivo. Explicações oficiais ao Governo não foram pedidas, mas o FMI diz que continua a analisar a flexibilidade salarial em Portugal (…) O Negócios sabe que a informação da folha de Excel enferma de vários problemas (…) Ao que foi possível apurar junto de fonte conhecedora do processo, das observações ignoradas referentes a 2012, pelo menos três quartos dizem respeito a cortes salariais. A confirmar-se esta informação, mais de 20% dos trabalhadores por conta de outrem sofreram cortes salariais o ano passado, contra os 7% reportados pelo FMI. A estes juntam-se os 45% que enfrentaram uma estagnação salarial. Ou seja, 65% dos trabalhadores viram o seu salário manter-se ou diminuir. A tese da rigidez nominal de salários e das suas implicações na destruição de emprego sai fragilizada.

Alguns dos excertos mais relevantes de uma relevantíssima notícia de Rui Peres Jorge no Negócios, a fazer lembrar Thomas Herndon. Definitivamente, a economia política neoliberal parece ter demasiados problemas com o Excel...

Lei de Gresham


Tal como previsto pela lei de Gresham, o Moedas mau expulsou o Moedas um pouco menos mau. Como assinala o esquerda.net, Carlos Moedas, o secretário de estado adjunto do actual governo que na 3ª feira passada declarou na universidade de verão do PSD que "as dívidas têm que ser todas pagas, os países têm que pagar todas as dívidas e é importantíssimo que isso fique claro" é a mesma pessoa que no blogue 31 da Armada, em Maio de 2010 e quando a dívida pública portuguesa correspondia a cerca de 90% do PIB (comparados com os actuais 132%) defendia que "só nos  resta (a nós e a outros) o possível caminho da reestruturação da dívida. Ou seja, ir falar com os nossos credores e dizer-lhes que dos 100 que nos emprestaram já só vão receber 70 ou 80. Este é um caminho árduo e complicado, a tal parede de que se fala, mas que nos permitiria começar de novo."

Qualquer um pode mudar de opinião, com certeza, mas neste caso a opinião de Moedas passou da constatação de uma evidência em termos económicos e de uma posição de mínimo bom senso relativamente à viabilidade de um país para o que não passa da enunciação de uma capa ideológica de teor moralista visando legitimar a nefasta estratégia económica em curso. O que mudou entretanto? Para além da entrada para o governo, certamente Moedas terá passado a valorizar menos a honestidade intelectual e mais a possibilidade de tirar partido da grande fraude que consiste em apregoar a possibilidade de um país cada vez mais empobrecido pagar uma dívida cada vez maior, para assim perenizar a estratégia de criação de um país mais precário, mais desigual, mais destruído nas suas estruturas produtivas e sociais, onde o trabalho é menos valorizado e os serviços públicos menos acessíveis e de menor qualidade. Em suma, um país mais subdesenvolvido para benefício das elites nacionais e internacionais.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Economia política das pensões

Martim Avillez, na sua última coluna no Expresso, defende que o sistema de pensões por repartição em vigor “depende em absoluto da matemática da natalidade e do emprego” e que por isso estaria condenado. Adoro o uso da expressão “matemática” para tentar dar uma aparência de rigor ao que não passa de manipulação ideológica. É que por uma razão misteriosa Avillez não informa os leitores que qualquer sistema de pensões, incluindo o de insegurança social por capitalização, depende da mesma “matemática”, da produtividade da força de trabalho. Ou será que se acha que há almoços grátis à nossa espera no casino financeiro?

Na realidade, no casino, os almoços são mais caros, na cozinha rouba-se comida para pagar salários milionários a cozinheiros que só sabem inventar mixórdias, inventam-se despesas com entradas, uma minoria come caviar e as intoxicações são frequentes para a maioria.

Como sublinha Maria Clara Murteira num livro que é todo um antídoto contra a manipulação – A economia das pensões – qualquer sistema de pensões depende das forças económicas e de mecanismos de decisão sobre a parte da riqueza que em cada momento vai para o capital e para o trabalho, para trabalhadores activos e para os reformados. O sistema por repartição é menos opaco sobre a decisão política que subjaz a essas divisões, é mais justo, tem menos custos de transacção e cria laço social, o tal estamos todos juntos nisto. A questão social é mesmo a da criação de emprego e de riqueza e da sua repartição.

O paradoxo está nas projecções europeias de sustentabilidade em que este Governo se baseia. Portugal aparece como dos países em que o sistema de segurança social está mais equilibrado. Pouco importa, porque a crise gerada pela austeridade é mesmo uma oportunidade, o governo está cheio de vontade de passar para a fase seguinte do seu plano de residualização do Estado social. O governo tem alguns problemas, ilustrados pela história dos fundos de pensões da banca que foram socializados, revelando no processo duas coisas: o desastre dos fundos e a capacidade da banca em transferir para o público os seus custos. A estratégia é ir erodindo o sistema e pervertendo-o inventando esquemas que o aproximem da capitalização, como contas individuais, até chegar ao plafonamento, a machadada final. E, entretanto, meter medo às pessoas, claro.

Paralelamente, o governo tem ainda a seu favor o facto de haver muito dinheiro no sector financeiro: o tal medo tem levado uma politicamente influente minoria, a tal “classe média”, que poupa a investir em PPR’s e noutras ilusões. O sector dos seguros parece ir de vento em popa. Há dinheiro privado para investir na luta das ideias. E dinheiro público, bastando ler o que produz a Comissão Europeia, mais radical que o próprio Banco Mundial.

Termino com um conselho: quando lêem estudos que prescrevem a privatização aberta ou encapotada da segurança social, têm de fazer uma pergunta prévia – quem os pagou? É que, por exemplo, sob o manto diáfano da respeitabilidade académica nesta área, encontrarão muitas vezes, também em Portugal, o sector financeiro a pagar, em linha com as práticas de comercialização e perversão da ciência em curso à escala internacional. Trata-se, em certa medida, de aplicar aos economistas que se curvam perante o homo economicus, sobretudo a estes, as mesmas hipóteses de incentivos pecuniários e de egoísmo racional que eles atiram a tudo o que é humano.

domingo, 25 de agosto de 2013

Preso por ter cão, preso não ter

Estranhos tempos estes na economia mundial. Os EUA e o Japão parecem recuperar a bom ritmo, conquanto as fontes do seu crescimento sejam diferentes. Na China, ninguém sabe muito bem o que se está a passar, com notícias contraditórias todas as semanas. Na Europa, a economia alemã parece estar a crescer, sobretudo graças aos aumentos reais de salários e ao crescimento da procura interna. Portugal, retirando todos os efeitos temporários que justificaram os surpreendentes resultados do segundo trimestre - a nova refinaria da Galp que impulsionou as exportações de combustíveis, os efeitos de calendário que influenciaram as contas do segundo trimestre, a aparente estabilização de salários e consumo, etc. -, também parece beneficiar desta nova conjuntura internacional. Estará o fim da crise à vista?

Sabemos que qualquer retoma económica impulsionada pela economia internacional será sempre destruída pelas novas ondas de austeridade doméstica que aí vêm. Daí toda a cautela colocada pelo Governo na leitura dos mais recentes números. Contudo, é interessante notar como, ignorando a austeridade interna, a retoma internacional tem claros efeitos contraditórios para uma economia altamente endividada como a portuguesa. Com as boas notícias vindas do outro lado do Atlântico, a Reserva Federal norte-americana anunciou o fim progressivo dos seus programas de injecção de liquidez no sistema financeiro. Os mercados, de forma exacerbada, reagiram. As taxas de juro da dívida americana (referência para toda o sistema) aumentaram, provocando um influxo de capitais a esta economia. As consequências são particularmente visíveis nos chamados países emergentes com mercados financeiros mais ou menos liberalizados (Brasil, Índia), para onde os capitais tinham afluído em busca de taxas de juro mais elevadas.

O que é que isto tem que ver com Portugal? Bem, o tão propalado regresso aos mercados da República Portuguesa baseia-se na esperança de captar fluxos de capitais externos atraídos pelas elevadas taxas de juro pagas pela dívida portuguesa, em comparação com outros activos. Esta "vantagem" desvaneceu-se aparentemente. Parece pouco provável que as taxas de juro venham a cair num futuro próximo. Se não bastasse este efeito perverso da recuperação económica norte-americana, outro se apresenta. O crescimento económico alemão resultou num normal aumento das taxas de juro da sua dívida soberana, uma vez que a necessidade de activos "seguros" diminui com a perspectiva de melhoria da economia. A taxa de juro de referência para a Portugal (dívida alemã à qual acresce um prémio de risco) está a aumentar. Mais uma vez, a perspectiva de descida da taxa de juro portuguesa não parece plausível.

A economia portuguesa parece encerrada numa situação de "preso por ter cão e preso por não ter", devido ao seu elevado endividamento externo. Se a economia internacional recupera, aumentamos as exportações, mas as taxas de juro aumentam. O rendimento que ganhamos de uma forma, perdemos de outra. Se, por outro lado, a economia internacional cai, diminuem as exportações, mas beneficiamos de uma taxa de juro mais baixa. O nó górdio da economia portuguesa torna-se saliente. Só um corte na dívida externa e um "ataque" às suas causas mais estruturais - inserção desigual e combinada na economia internacional, onde o euro assume carácter central - pode devolver a esperança.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Evoluções

A distância abissal que se regista nas presentes conjuntura e estrutura entre vitória intelectual, questão sobretudo de validade, e vitória política, questão sobretudo de poder, pode bem estar a levar alguns economistas keynesianos mais ou menos bastardos, perplexos com o enviesamento keynesiano da realidade, por um lado, e com o enviesamento neoliberal das escolhas de política económica, por outro, a valorizar a economia política, a explorar o poder das ideias e sobretudo o poder dos interesses colectivos que explicam o curso da política, no processo descobrindo que as questões de classe contam também aqui e que economistas como Michael Kalecki já o tinham percebido há muitas décadas atrás. Paul Krugman, como muito bem indica Vicenç Navarro, é talvez o mais proeminente exemplo desta evolução em tempos bem sombrios.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A narrativa neoliberal não foi de férias


O discurso de Passos Coelho no Pontal foi mais um episódio de propaganda política, só possível porque as televisões perderam a vergonha. A pretexto de informação em directo, fizeram a transmissão na íntegra de um discurso de comício. Nada que espante, porque hoje a televisão desempenha um papel central na construção de uma narrativa hegemónica da crise, um discurso simples sobre as suas origens, os seus responsáveis e as transformações do Estado que nos farão sair dela. Para executarem o seu projecto político, os partidos que nos governam precisam, no mínimo, de uma generalizada resignação dos cidadãos. A forma mais eficaz de a produzir consiste em criar uma larga maioria de fazedores de opinião (jornalistas, economistas, politólogos, deputados, políticos senadores) que sustente nas televisões a mesma narrativa da crise, a narrativa neoliberal.

O buraco em que caímos - forte e prolongada quebra na produção, desemprego de massa, mais fome e pobreza, crescimento da dívida pública em bola de neve, redução de salários, pensões e prestações sociais, pesado aumento de impostos sobre as famílias - é um fenómeno de interpretação complexa. Aliás, não pode haver uma interpretação indiscutível desta crise, ou de qualquer realidade sociocultural, já que não temos acesso a essa realidade a não ser através de conceitos, teorias, valores, ideologias. Não sendo a realidade um produto das nossas mentes, como sugere um certo construtivismo pós-moderno, ainda assim a narrativa de uma crise é uma mediação essencial porque tem causalidade própria. Quando é politicamente validada, torna-se a fonte inspiradora das decisões de reconfiguração do Estado e das políticas que lançam a sociedade numa nova e duradoura trajectória.

O colapso que estamos a viver foi gerado ao longo de mais de uma década por mecanismos socioeconómicos criadores de endividamento público e privado (sobretudo este) que, num país de economia frágil e sem moeda própria, se tornaram insustentáveis. Por isso, a crise atinge mais a periferia sul da zona euro. A interpretação neoliberal deste processo explora o senso comum e faz sentido para a maioria das pessoas - "o nosso despesismo sustentou durante décadas um Estado social incomportável, o que nos conduziu a mais uma crise. Vamos na terceira intervenção do FMI, mas, agora dentro do euro, temos mesmo de fazer aquilo que já não é adiável, reduzir o Estado social focando-o nos mais necessitados".

Esta narrativa integra sem dificuldade alguns factos que chocam o cidadão comum (casos de endividamento para consumo, muita formação profissional ineficaz, obras públicas de duvidosa utilidade, distribuição de empregos no Estado e empresas públicas, corrupção de vários tipos, etc.) ligando-os a má gestão do Estado, "a causa" da crise. É uma narrativa muito forte porque é plausível para o cidadão comum sem formação específica. Assim sendo, seria de esperar que as esquerdas tivessem investido fortemente na elaboração de uma alternativa, até porque a política de austeridade que tem sido seguida produziu uma calamidade social. Infelizmente, apenas foram produzidas narrativas parcelares sem consistência global. Uma contranarrativa teria de explicar em linguagem simples e popular que o endividamento foi gerado pela perda do escudo e que isso conduziu ao crédito fácil e à desindustrialização do país. Teria de dizer que com o euro perdemos as políticas de que precisamos para ir mais além no desenvolvimento. Teria de dizer também que perdemos a liberdade para decidir sobre as diversas vertentes do Estado social porque essas escolhas já estão feitas e inscritas nos tratados, as que a Alemanha aceitou ou mesmo impôs. Teria de dizer que não temos futuro dentro do euro.

Em Agosto, a narrativa neoliberal não foi de férias.

(O meu artigo no jornal i)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Fadigas há muitas

Há dois ou três dias atrás, confirmou-se, talvez com mais rigor, o que já se sabia: o governo alemão tem beneficiado com o facto de estar no topo da cadeia alimentar da Zona Euro, um panóptico monetário por si desenhado, assistindo a uma significativa redução das despesas com juros, mais de 40 mil milhões de euros, entre 2010 e 2014, em relação ao que estava planeado, segundo a Spiegel. Num contexto que se recusa a ser pós-nacional, as obrigações do tesouro alemão têm sido vistas como o refúgio para muitos investidores inseguros e que só encontraram a segurança possível no poder que mais se assemelha ao soberano da zona. Com notável sentido de oportunidade, a Câmara Corporativa repesca uma declaração de Poiares Maduro: “Se há a ideia de fadiga de austeridade em alguns países, também há a da fadiga da solidariedade noutros.” Só a ideia da simetria entre supostas fadigas, expressão de resto abominável da troika, é todo um programa de um governo que é como se não fosse de cá. Aliás, não foi por acaso que quando este europeísta de referência foi alcandorado a ministro o apodei de Gaspar do Direito.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Do folguedo nacional

Portugueses trabalham mais uma semana por ano do que a média dos europeus, estando em segundo lugar num indicador perverso, que o governo quer acentuar, mas fazer turismo no país ou no estrangeiro é um luxo que só chega a 22,4% dos portugueses, sendo que menos a ir para fora cá dentro na UE só mesmo na Bulgária. Contraria-se pela enésima vez, até porque o Verão já não era azul antes da crise, a narrativa moralista cultivada a Norte e reproduzida por elites subalternas a Sul: definitivamente, não foram os maus hábitos periféricos, o trabalha-se pouco e folga-se muito, e até a crédito, vejam lá, que nos trouxeram aqui e que não nos deixam sair daqui...

Um gráfico vale quantas palavras sobre política económica e economia política?

Via naked keynesianism, a evolução, em percentagem, do PIB entre o pico antes da crise (2007-2008) e o segundo trimestre de 2013.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Falta a contra-narrativa


Na Alemanha, as sondagens indicam que Angela Merkel pode ganhar as eleições de Setembro e formar com os liberais da actual coligação um novo governo com maioria absoluta. Relata ainda o Público (18 Agosto) que, quando Merkel subiu ao palco num dos comícios do arranque da campanha, “só disse duas frases gerais sobre a UE: “Precisamos de uma Europa forte” e “todos os países devem fazer o seu trabalho de casa”. […] O filósofo Peter Sloterdijk diz que Merkel preside a um período de "letargocracia" (contrapondo no entanto que ela está apenas a reflectir o que o eleitorado pretende). Já num artigo de opinião no Süddeutsche Zeitung (centro-esquerda), o jornalista Daniel Brössler ataca Merkel por ter "removido" a questão europeia do debate eleitoral. […] Mais: o quadro de "os laboriosos e poupados alemães que têm de pagar pelos despreocupados europeus do Sul" ficou tão embutido na consciência dos alemães que será difícil de desfazer, critica Brössler, notando que a Europa é um "tema tóxico" e que o partido que o abordar arrisca-se a ser paralisado por lhe tocar.”

O facto relevante é este: na Alemanha, está para durar a hegemonia da narrativa ordoliberal da crise do euro – “os despesistas do Sul sustentaram durante décadas um Estado social incomportável e assim criaram na zona euro uma crise da dívida soberana”. Entretanto, as diferentes esquerdas europeias continuam a não contrapor uma narrativa alternativa, ou porque se movem dentro do mesmo paradigma (a globalização é um dado, a moeda única é parte do caminho para os Estados Unidos da Europa) ou porque, desvalorizando a realidade nacional, aspiram à construção de um “euro bom”, a moeda de uma futura entidade política europeia, pós-nacional, dominada pelas classes trabalhadoras (ver a crítica desta ilusão no artigo de Frédéric Lordon “Sair do euro, mas como?”, Le Monde Diplomatique). O certo é que cada vez mais se sente a falta da contra-narrativa.

Falta-nos uma esquerda que apresente uma narrativa da nossa crise como parte do colapso do euro enquanto projecto do capitalismo financeiro em ascensão fulgurante nos anos noventa do século passado. Uma meta-narrativa mobilizadora das percepções populares, que integre as experiências vividas com o desemprego de massa, a erosão do Estado social, os escândalos políticos e da finança, a crise bancária e a crise das finanças públicas, que numa explicação simplificada atribua tudo isso à perda da soberania e à mão bem visível do dinheiro que tudo compra. Enfim, que aponte como causa última deste estado de coisas o colete-de-forças do euro e a tutela germânica da UE.

Como alguém escreveu, “Se uma conjuntura oferece a oportunidade para uma intervenção decisiva, antes de mais ela tem de ser percebida como um momento em que uma intervenção decisiva pode, e talvez deva, ser realizada. Mais ainda, ela tem de ser percebida como tal pelos agentes capazes de dar a resposta”. Enquanto isto não acontecer, permaneceremos numa situação de “catástrofe estacionária”, um conceito próximo do contributo de Gramsci, muito lembrado pelo João Rodrigues (por exemplo aqui).

Política soberana


Não, não iríamos dar a Espanha ou a qualquer outro país – e aos Estados Unidos anda menos que aos outros – a satisfação de inspeccionarem o nosso avião. Defenderíamos a nossa dignidade, a nossa soberania e a honra da nossa pátria, da nossa grande pátria. Nunca aceitaríamos esta chantagem.

Evo Morales, “Eu, presidente da Bolívia, sequestrado na Europa”, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2013.

Excerto de um admirável artigo do Presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, que tem o condão de sintetizar claramente, a partir das lições de um episódio lamentável de subserviência de países europeus ao bem vivo imperialismo norte-americano, muito do que a esquerda precisa também deste lado – uma política multi-escalar de imbricado recorte patriótico e internacionalista. Como Morales no fundo assinala, só essa combinação, que também é feita de valores básicos como honra, dignidade e coragem para recusar a chantagem, é capaz de forjar solidariedades anti-imperialistas fortes e consequentes, de pugnar pela soberania dos Estados, sem a qual não há democracia, e de cultivar valores que são também universais, dos multidimensionais direitos humanos, concretizados pelas lutas democráticas das forças que aspiram a conquistar o poder nos Estados a um direito internacional que requer a cooperação entre Estados verdadeiramente soberanos. Realmente, a maioria das derrotadas esquerdas europeias, enredada numa armadilha política e intelectual euro-imperialista da qual não aparenta conseguir sair, tem hoje muito mais a aprender do que a ensinar. Como Morales assinala, tem também muito que recordar: “um neo-obscurantismo ameaça os povo de um continente que, há alguns séculos, iluminava o mundo com as suas ideias revolucionárias e suscitava a esperança”.

Debate em curso


No contexto do debate sobre a possibilidade de superar as actuais escolhas de política económica, deixo um excerto do meu último artigo no Le Monde diplomatique - edição portuguesa do mês passado, agora republicado no livro Que fazer com este euro?, onde exploro algumas das razões que me levam hoje a considerar que os que dão primazia política às instituições europeias nessa superação ignoram ou subestimam, à sua e à nossa custas, algumas questões:

A esperança, ainda prevalecente em muitos sectores da esquerda, num reforço da integração europeia que possa institucionalizar uma espécie de euro-keynesianismo assenta num idealismo a-histórico que é hoje perverso. Este idealismo é visível na subestimação de tendências pesadas e com lastro histórico, do Tratado Orçamental à confirmação de que o orçamento da União será nos próximos anos ainda menor do que o resíduo que foi nos últimos, passando pelo reforço em curso do poder pós-democrático do BCE. É visível ainda na subestimação dos impactos das realidades materiais do desenvolvimento desigual dos capitalismos centrais e periféricos europeus nos ciclos políticos nacionais, o que dificulta ainda mais aquilo que de resto historicamente nunca se conseguiu, até porque a integração foi feita para que não se conseguisse: um acordo pós-nacional entre as classes populares capaz de gerar um sujeito histórico europeu e que operasse nessa escala, mesmo que este esquecesse por um momento os formidáveis obstáculos institucionais que enfrentaria para recriar ao nível do euro o tipo de instituições que existiram, e em muitos casos ainda existem, ao nível dos Estados. Este posicionamento é perverso, sobretudo porque deixa o terreno nacional ao que perigosamente imagina e quer criar a direita nacionalista. Mas também por outro motivo: existe alguma evidência de que a mobilização supranacional dos povos entusiasme mais do que algumas elites?

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Luzes


Em 2013, partes do Orçamento do Estado de 2013 foram consideradas inconstitucionais. Essa decisão foi tomada a 5 de Abril, ou seja, logo no início do 2.º trimestre, e com efeitos imediatos. Assim, e ao contrário do que decidiu em 2012, obrigou o Governo a não cortar tanto na despesa pública como o que estava previsto no Orçamento. É evidente que ainda é demasiado cedo para se estimar com exactidão o impacto económico das decisões do Tribunal Constitucional. Mas tudo aponta no mesmo sentido, hoje pela primeira vez em bastante tempo, podemos discernir uma ténue luz ao fundo do túnel. Finalmente, alguns indicadores sugerem uma retoma da actividade económica e o nosso principal drama, o desemprego, caiu substancialmente no último trimestre. Tantos economistas que tanto condenaram os juízes do Tribunal Constitucional e, vai-se a ver, as declarações de inconstitucionalidade dos Orçamentos do Estado eram as decisões economicamente mais ajuizadas. 

Luís Aguiar-Conraria, A Máfia, o tribunal e o multiplicador da despesa orçamental, Público.

Para que esta luz dos números do PIB se transforme em claridade é preciso que o túnel termine. Acontece que este vai ser prolongado ainda por muito tempo. O Governo continuará a prosseguir uma política de austeridade imposta pela troika de credores que, na prática, põe o país e os portugueses a produzirem abaixo do que estes seriam capazes: com menos emprego, menos salários, menos produção, menos riqueza. 

Os economistas são consensuais: não há forma de o consumo das famílias e a confiança das empresas escaparem ilesas aos cortes profundos nas pensões e aos despedimentos no Estado que se avizinham. É mais um golpe nos funcionários públicos e nos reformados e a expectativa está em saber se os trabalhadores e empresários do sector privado conseguem compensar o choque.

Manuel Esteves, A luz ao fundo do tunel da austeridade, Negócios.

Dois bons artigos, convergindo, entre outras, nas metáforas e na indicação que nos acabam por dar sobre a evolução que tem ocorrido no debate económico em torno das consequências da política de austeridade. Tirando a tropa-fandanga que circula, formal ou informalmente, em torno do governo parece ter emergido um novo consenso intelectual em relação à austeridade, que une sectores muito diferentes, alguns dos quais tiveram de passar por esta experiência, por assim dizer, para mudar de posição. É a vida. Outra coisa é a política, o poder, para fazer com que o curso da política económica seja alterado, evitando novos e recessivos cortes orçamentais. Tal como fez a 5 de Abril, de resto logo aqui saudado, talvez o TC possa vir ainda a fornecer mais evidência sobre os benefícios da Constituição também na travagem parcial da austeridade, confirmando assim os piores receios da troika e do JP Morgan...

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Ao mesmo tempo

Dizer-se que a crise é “uma oportunidade extraordinária” é o cúmulo da safadeza económica. Não admira que os capitalistas dos chamados call centers olhem assim para a crise, já que este sector, aparentemente em crescimento, é conhecido por ser baseado em relações laborais onde a compulsão é tão aberta quanto a precariedade, elementos que a crise favorece com consequências deletérias para a transformação estrutural que possa assegurar o desenvolvimento: “se não estás satisfeita, a porta de saída é ali”. São sectores onde se pode falar e pagar assim que prosperam num país semiperiférico e atravessado por uma espécie de “desenvolvimento desigual e combinado” (talvez devamos dizer desenvolvimento do subdesenvolvimento desigual e combinado, juntando duas fórmulas clássicas da economia política internacional marxista…). A reportagem de Paulo Moura, no Público do passado Domingo, sobre o crescimento das multinacionais do call center em Portugal, de onde foram tiradas as citações, resume na perfeição a lógica dominante em curso: “Portugal está portanto num momento ideal para a entrada das multinacionais do call center. Os últimos governos dotaram o país de uma boa infra-estrutura tecnológica, baixaram os salários e aumentaram o desemprego até ao ponto de terem grande parte da população desesperada, mas ainda não ao extremo de haver protestos violentos. Um bom trabalho, na perspectiva das multinacionais. Para elas é perfeito: um país desenvolvido e miserável ao mesmo tempo.”

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Interrupção?

Os primeiros dados do INE para o segundo trimestre indicam um crescimento de 1,1% face ao primeiro trimestre, o maior crescimento na Zona Euro para o período e quase o dobro da previsão mais optimista, e ajudam a explicar, com a sazonalidade, uma parte dos últimos, e também surpreendentes, dados sobre o desemprego, já aqui referidos. É claro que, comparado com o segundo trimestre do ano passado, a queda é de 2% (o gráfico do INE ajuda a que não se embandeire em arco). Um trimestre não faz esquecer o peso de dez trimestres consecutivos de recuo em cadeia, graças as políticas de austeridade, e não faz esquecer o perigo que estas políticas continuam a representar para os próximos trimestres. De resto, a economia portuguesa terá beneficiado do crescimento da procura externa, o que, por exemplo, num dos nossos principais destinos de exportação, a Alemanha, poderá ter sido devido à maior dinâmica da procura interna puxada pelo aumento dos salários e do consumo público. A estabilização da nossa procura interna também terá ajudado: o que cai muito tem de subir alguma coisa, sobretudo se as expectativas de certos sectores se tornam um pouco menos pessimistas, levando a que certas despesas de consumo não sejam mais adiadas, porque um certo e determinado tribunal decidiu que os cortes nos salários são menos intensos e porque os salários, em geral, deixaram de cair em termos homólogos. Juntem a isto, como sublinha Rui Peres Jorge no Negócios, o efeito Galp, já aqui explorado e que explica um terço do crescimento das exportações em termos homólogos, um mau primeiro trimestre para comparar e menos austeridade e têm as contas baralhadas para um futuro que pode bem não ser a continuação de um trimestre em contraciclo.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O fabuloso destino de Eike Batista


O Financial Times publicou, há uns dias atrás, uma reportagem sobre a ascensão e queda do império daquele que foi até há pouco tempo o homem mais rico do Brasil, Eike Batista. Uma história que encerra algumas das tendências longas do capitalismo contemporâneo. Nascido de uma família da burguesia brasileira (o pai foi ministro das minas e presidente do gigante mineiro "Vale"), Batista beneficiou de toda a euforia em torno das matérias-primas dos últimos anos para construir uma complexa rede de empresas - uma de prospecção de petróleo, outra de transportes, outra de infra-estruturas portuárias, outra de energia e, finalmente, uma empresa mineira. O empresário conseguia assim dominar toda a cadeia de produção de matérias-primas da origem até à exportação. Isto tudo alicerçado num forte endividamento junto dos mercados financeiros, beneficiando de financiamento público e para-público (4,5 mil milhões de dólares do Banco Nacional de Desenvolvimento) e da abundante liquidez internacional de paragens tão distantes como o fundo de pensões dos professores de Ontario, no Canadá.

O plano parecia um sucesso. A empresa de prospecção petrolífera OGX, núcleo duro do projecto, chegou a atingir 35 mil milhões de dólares de capitalização bolsista, embora contasse só com 350 trabalhadores (imagino que a sua actividade era sobretudo subcontratada). Eike Batista beneficiou assim triplamente da explosão da esfera financeira que acompanhou o seu projecto. Por um lado, conseguiu financiamento um pouco por toda parte. Depois, beneficiou da euforia financeira em torno das matérias-primas num contexto em que a China parecia um sorvedouro. Finalmente, o seu brilhante marketing permitiu uma valorização estratosférica das suas empresas. O empresário “valia” 30 mil milhões de dólares há pouco mais de um ano.

Entretanto, a sua fortuna líquida encolheu agora para uns “meros” 200 milhões. As promessas de produção de petróleo goraram-se por falta de capacidade tecnológica. O império estava assente em pés de barro. Com os preços dos minerais a caírem e as acções das suas empresas a colapsar, Batista está agora obrigado a vender activos e reestruturar todo o seu modelo negócio. Claro está que, duas semanas antes de ser anunciado o falhanço na prospecção, Eike Batista “oportunamente” vendeu lotes de acções da sua empresa.

Quem perdeu com este castelo de cartas? Com certeza, alguns fundos de gente muito rica. Mas, quem fica realmente a perder são os cidadãos brasileiros. Por um lado foram eles que financiaram as empresas, mostrando como o desenvolvimentismo estatal pode ser capturado por interesses privados quando não há mecanismos de controlo democrático. Por outro lado, foram trabalhadores e pequenos proprietários que se viram sujeitos às expropriações e violência de projectos que prometiam mundos e fundos sem olhar a meios. Ah, claro, e os professores de Ontario.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Que fazer com este euro?

Como afirma a Sandra Monteiro, logo no início da introdução, “este livro nasce de uma urgência: fornecer aos leitores instrumentos de análise e de reflexão, que lhes permitam participar, do modo mais informado possível, nas difíceis escolhas que se anunciam”. Este sétimo livro da colecção de bolso do Le Monde diplomatique – edição portuguesa reflecte bem a natureza de um projecto editorial cooperativo firmemente ancorado à esquerda e apostado no pluralismo, condição necessária também para fazer perguntas e dar respostas robustas que permitam superar um impasse que favorece as direitas. Trata-se então de procurar respostas à mais importante questão de economia política nacional. Retoma-se assim o espírito e a letra do número de Maio do jornal que colocou esta mesma questão. Uma das componentes principais deste livro consiste precisamente nas perguntas e nas respostas que economistas ligados ao PS, PCP e BE aí colocaram e deram (o debate ao vivo com alguns deles pode ser visto aqui), permitindo também, creio, ter acesso ao estado do debate, mais ou menos intenso, mais ou menos convergente, dentro de cada um dos partidos e para lá deles. Um mosaico de análises que fica mais completo com o meu artigo, saído no mês passado, e com os artigos, inéditos, de Daniel Oliveira, Ricardo Noronha, Viriato Soromenho Marques e Frédéric Lordon, este último inédito em português. O debate não pode parar.

O centrismo pode estar à frente mas não é alternativa

No Reino Unido, o Partido Trabalhista está com dificuldade em estabilizar a sua liderança nas sondagens após anos de austeridade Conservadora (ver esta análise). Embora dispondo de moeda própria, o problema deste centro-esquerda é idêntico ao que se verifica na restante Europa, a assimilação da teoria económica ortodoxa e a cumplicidade com a finança. Segue a tradução de alguns parágrafos de um artigo de Lord Skidelsky, biógrafo de Keynes:
“Juntando tudo isto podemos dizer que a economia está hoje ligeiramente maior do que em 2010 – embora ainda 3,5% menor do que em 2008 – mas com menor produto por trabalhador e com menor rendimento para a maior parte das pessoas. E, a um nível de 8%, o desemprego mantém-se inalterado há três anos.

O que o Partido Trabalhista deveria estar a defender é que tudo isto resulta da política errada e até cruel de redução do défice cuja lógica é bem ilustrada pelas afirmações do Primeiro-Ministro de que “não podemos gastar o dinheiro que não temos” e do Ministro das Finanças de que “temos de aprender a viver com os meios de que dispomos”.

Isto faz todo o sentido quando os recursos da nação estão a ser plenamente utilizados, mas é teoria económica disparatada quando se está perante um grande desemprego. Porque, nesse caso, os meios ao dispor do governo incluem esses recursos por utilizar. Se estivessem a ser adequadamente utilizados o governo teria mais dinheiro para gastar. Gastando mais, criaria os meios para os empregar.

Por isso, nas suas propostas eleitorais os Trabalhistas deviam apostar na promessa de reverter a política de redução do défice. Infelizmente compraram aos Conservadores a estória da austeridade, apenas discordando nos detalhes, sobretudo no ritmo da redução do défice. Isto é uma capitulação intelectual. Os líderes Trabalhistas ficaram tão aterrorizados com a possibilidade de serem acusados de despesismo que têm tido medo de argumentar que gastar mais dinheiro agora é a maneira mais segura de pôr a economia a crescer e reduzir o défice.”

domingo, 11 de agosto de 2013

Os SWAPs do Citigroup

Ineditamente, a estrutura dos SWAPs que o Citibank queria vender ao Governo de Sócrates, em 2005, foi tornada pública. Esperemos por aquelas que foram, de facto, contratadas pelas empresas públicas e, já agora, por aquelas que o Instituto de Gestão Crédito Público terminou com chorudos ganhos. No entanto, o exemplo destes SWAPs é bem eloquente, conquanto provavelmente não tenham a complexidade e o exotismo das que foram contratadas pelas empresas públicas.

Simplificando, para poder tornar inteligível e ignorando algumas partes do contrato (como a “opção” inserida), tomemos como exemplo um dos SWAPs do Citibank (existem três). O activo subjacente é uma Obrigação do Tesouro no valor de 816 milhões de euros a vencer em 2006 e com um pagamento de juros de 9,5% (altíssimos para os juros praticados nessa altura no mercado). O Citigroup oferece-se para pagar os juros desse ano antes da OT vencer. Uma poupança para o Estado nesse ano de 77,5 milhões de euros. O défice tonar-se-ia mais pequeno. A contrapartida pedida pelo Citigroup é que, durante 30 anos, o Estado pague uma taxa fixa de 3,7% sobre os 816 milhões de euros que entretanto venceram em 2006 e receba a taxa de juro variável equivalente à Euribor a seis meses. É nesta troca de pagamento de juro que encontramos o núcleo do SWAP. Agora imaginem que o contrato tinha sido assinado nestes moldes (simplificados). Em 2013, e ainda não tínhamos chegado a um terço de um contrato que só acabava em 2036, o Estado iria receber 2,85 milhões de euros (0,35%) e pagar 30 milhões de euros (3,7%). A poupança dos 77,5 milhões em 2005 ia sair muito cara.

Dir-me-ão, OK, seria um mau negócio, mas isso deve-se a factores imprevisíveis como a descida histórica da Euribor neste contexto de crise. Podia ter acontecido ao contrário, não é verdade? Não, no contrato do Citigroup há um tecto de 3,75% para o que eventualmente vai pagar. Eventuais perdas seriam sempre muito diminutas em comparação com o risco potencial de perdas incorrido pelo Estado. Vale a pena notar como o produto oferecido foi propositadamente construído pelo Citibank para maquilhar as contas públicas de 2005, já que existem um conjunto de preocupações com a compatibilidade com os critérios estatísticos do Eurostat no que toca a contas públicas. A predação do actual sector financeiro no seu melhor.

Finalmente, há um agradecimento aqui a fazer. Aos funcionários públicos que trabalham no IGCP que não só conseguiram “desmontar” o produto, identificando os riscos, como deram o parecer negativo. Aparentemente, devido ao seu mandato, o IGCP não pode contratar derivados (como são os SWAPs) sobre activos subjacentes com um “tempo de vida” mais curto.

P.S: O texto sobre SWAPs da Sara Rocha no Le Monde Diplomatique deste mês é leitura essencial. Este é, aliás, uma edição a não perder. Da disfuncionalidade da finança dos derivados, ao Euro num artigo de Fredric Lordon, passando pela esclarecedora discussão feita pela Eugénia Pires sobre as modalidades de reestruturação da dívida pública.


sábado, 10 de agosto de 2013

Consistências

Os episódios mais recentes da crise política estão a ampliar a compreensão de como opera a engenharia neoliberal – apoiando-se na globalização financeira e na captura do Estado pelos seus gestores e produtos, com a ajuda de instituições europeias e internacionais. Esta percepção pública é fundamental para se entender os interesses divergentes em jogo, que nenhuma «salvação nacional» resolveria, e para que se lute por soluções políticas capazes de afrontar as mil e uma formas de extorsão e de opacidade escondidas atrás da obediência servil aos mercados financeiros. 

Durante muito tempo, tudo foi feito para que os achássemos abstractos, quase do reino da ficção. A economia real era a outra, a que produzia os bens e produtos necessários aos nosso consumo, circulação, comunicação, etc.. Nos jornais, as páginas de economia vinham no fim, para especialistas, e as notícias sobre produtos financeiros ou variações bolsistas pareciam ainda mais distantes, para o cidadão comum, do que os engarrafamentos em Lisboa ou no Porto diariamente levados por rádios e televisões a pacatas e recônditas aldeias serranas pareceriam aos seus habitantes. Caímos na armadilha da indistinção entre dualismo e dualidade. Como agora sabemos, não estamos perante dois mundos separados, um «cá» e um «lá», como no dualismo, mas perante realidades interligadas, dualidades, que interagem «aqui» de acordo com interesses e relações de forças. 

Laboriosamente construída, esta falta de informação e de transparência foi, e é, uma pedra angular do sistema montado. A economista Sara Rocha mostra isso mesmo no artigo que chamamos à capa nesta edição («SWAP: quando as empresas públicas vão ao casino»). Ao mesmo tempo que explica o que são estes contratos, que descreve os seus contornos mais ou menos tóxicos e que alerta para a sua dimensão e previsíveis perdas para o erário público – em consequência de negócios, altamente lesivos, celebrados por instituições financeiras e do sector empresarial do Estado –, a autora mostra como estas engenharias foram montadas no contexto da União Europeia, logo com a obrigação de cumprimento dos critérios de Maastricht. Os processos de desorçamentação, subfinanciamento crónico e défices crescentes só pioraram com a falta de instrumentos de política económica e monetária imposta pela zona euro e, mais recentemente, com a imposição de políticas austeritárias no quadro do empréstimo da Troika (Banco Central Europeu, Fundo Europeu de Estabilização Financeira e Fundo Monetário Internacional).

Sandra Monteiro, Consistências tóxicas, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Agosto de 2013.

Muitos e bons artigos sobre crises e resistências e um livro, que pode e deve ser comprado com o jornal, sobre um debate que não vai parar, ou não fosse sobre a questão nacional, que é europeia, mais importante, e ao qual voltarei em próximo poste. Tudo num, ou com um, jornal que desintoxica.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Sem luz ao fundo do túnel


As sondagens realizadas em finais de Julho mostram que os partidos do governo estão a ser penalizados mas sem que tal conduza a uma inequívoca descolagem do Partido Socialista. Apesar do descalabro socioeconómico e financeiro em que o país se encontra e da recente crise política sem precedentes, o PS continua a não alcançar a maioria absoluta do eleitorado. Admitindo que a abstenção e o voto em branco devem continuar elevados, as sondagens mostram que os eleitores ainda não estabilizaram a sua escolha eleitoral, porventura insatisfeitos com o menu que lhes apresentam.
 
Não é difícil entender a insatisfação dos eleitores. Os partidos que estão no governo imputaram a presente crise à péssima gestão dos governos socialistas e apresentaram o memorando assinado com a troika como um roteiro adequado para nos colocar no bom caminho. Com os desastrosos resultados obtidos, a que se juntou a carta de demissão de Vítor Gaspar, o país começou a perceber que foi lançado num plano inclinado de que nem a suavização da austeridade nem o tão falado estímulo ao investimento o livram. Não esqueçamos que quaisquer cortes na despesa pública são sempre recessivos, mais ainda quando se trata de despedir funcionários. E também não esqueçamos que os apregoados estímulos ao investimento visam a redução dos custos das empresas e dos impostos das que ainda têm lucros, o que passa ao lado do que é decisivo, a quebra na procura e a grave incerteza quanto à sua retoma.

Até à rebelião de António Costa, e sobretudo até ao regresso de José Sócrates, a direcção do Partido Socialista evitou repudiar frontalmente o discurso do governo sobre as causas internas da crise. Ignorando a sua natureza sistémica, acabou por admitir, pelo menos implicitamente, que as causas internas eram as decisivas. A sua oposição centrou-se no excesso de zelo do governo na execução da austeridade inscrita no memorando e explorou de forma populista, como de resto a restante esquerda, os "erros de previsão" do ministro das finanças. Só mais tarde é que colocou a tónica do discurso na natureza perversa da austeridade, na dimensão europeia da crise e na necessidade de renegociar o memorando. Ainda assim, não fora a agitação de alguns notáveis do partido, o centrismo do PS quase o levou a assinar com o governo um acordo suicida para a cogestão da austeridade.

Boa parte do eleitorado já percebeu que o PS não tem uma alternativa para este caminho de atolamento na depressão. Mas também não vê no BE e no PCP uma política económica suficientemente elaborada para enquadrar estrategicamente a decisão de romper com o memorando e abrir uma renegociação da dívida pública. Afinal, o que faria um governo liderado por estes partidos se a resposta ao pedido de negociações fosse a suspensão do financiamento da UE? Um mínimo de respeito pelos eleitores impõe que enunciem desde já o que se seguiria ao fracasso de tais negociações e da consequente declaração de uma moratória ao serviço da dívida: sair da zona euro e financiar o Estado através da emissão de moeda soberana. Mais ainda, para ser consistente, esta esquerda teria de formular duas estratégias de desenvolvimento para o país, uma para a permanência na zona euro, caso a reestruturação da dívida fosse aceite, outra para o caso de ruptura porque, como é evidente, as condições institucionais seriam radicalmente distintas. Uma base ideológica anticapitalista, a falta de clareza na estratégia e a exclusão de uma plataforma eleitoral comum, são factores que se entrelaçam e impedem estes partidos de se afirmarem nas sondagens como a alternativa por que o eleitorado espera e desespera. Do meu ponto de vista, é sobretudo o impasse político à esquerda que torna a presente crise particularmente dramática. Não se vê mesmo qualquer luz ao fundo do túnel.

(A minha crónica de ontem no jornal i)



quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Bem-vindos ao «cheque-ensino» (I)

«De uma forma gradual, por vezes quase imperceptível, o ministro Nuno Crato está a levar a cabo uma transformação profunda do sistema educativo. Trata-se de uma estratégia que articula três eixos fundamentais: encolher a oferta estatal; subtrair recursos indispensáveis a um ensino de qualidade e proceder a uma dualização da escola pública. O objectivo último desta transformação parece ser claro: criar condições que favoreçam a expansão da oferta educativa privada, cedendo-lhe progressivamente o espaço desocupado pela erosão, delapidação e desqualificação da rede pública de ensino. Pelo caminho, o ministro de um partido que ainda ousa designar-se como social-democrata, desfere um golpe violentíssimo naquela que é uma das funções primordiais dos sistemas educativos próprios de sociedades democráticas: garantir a todos igualdade de oportunidades, criando e favorecendo condições de ascensão económica e social a grupos mais desfavorecidos.»

Do artigo publicado no Diário Económico há cerca de um ano atrás e que pode ser lido na íntegra aqui. Nos dias que correm, o governo prepara-se para instituir o «cheque-ensino», no quadro do novo regime jurídico do ensino particular e cooperativo, cuja revisão está prestes a ficar concluída. A política educativa de Nuno Crato é um dos melhores espelhos do projecto ideológico que se esconde debaixo do manto da austeridade e dos cortes sociais ditos «inevitáveis», supostamente «impostos» pela troika. Depois de emagrecer, degradar e desqualificar deliberadamente a escola pública (muito para lá dos compromissos iniciais do memorando de entendimento), o governo prepara-se finalmente para, como sempre desejou, alimentar as gorduras em que nunca quis tocar. Bem-vindos, caros contribuintes, ao desvio de verbas do ensino público para subsidiar - em nome de uma pretensa «liberdade de escolha» - escolas privadas e colégios, massivamente frequentados pelos filhos das elites.

Trabalhar

Os últimos dados do INE sobre o desemprego são uma notícia tão boa quanto absolutamente surpreendente: uma dinâmica trimestral destas só no final dos anos noventa, quando a economia crescia com pujança. Dois anos de destruição sem precedentes históricos de emprego foram interrompidos. A sazonalidade, a recuperação conjuntural da actividade económica, do género tudo o que cai muito tem de subir alguma coisa, sobretudo se a lógica de aprofundamento da austeridade tiver sido de alguma forma política e temporariamente bloqueada, como aventa Pedro Lains, e o aguilhão da miséria sortiram efeitos em sectores que têm tido alguma dinâmica como o turismo e sobretudo a agricultura (foi aqui que se criou quase todo o emprego): emprego a tempo parcial, precário, mal pago, mas sem esquecer que pior do que ser explorado só mesmo não o ser, como dizia Joan Robinson, uma lógica tão verdadeira quanto implacável para muitos dos que trabalham em tempos de crise, em tempos de desemprego de massas. É claro que a austeridade continuará e o seu trabalho destrutivo também e por isso ainda é de duvidar que a tendência pesada, veja-se a variação face ao segundo trimestre do ano passado (taxa de desemprego de 15,8%), tenha sido a prazo revertida. De resto, o lastro no mundo do trabalho desta desvalorização interna será bem pesado.

Os «swaps» por detrás da demissão

«A razão para esta demissão está sobretudo na forma como a opinião pública portuguesa ficou alerta em relação a este tipo de instrumento financeiro, com os exemplos das empresas públicas. A forma como este tipo de instrumento foi, e continua a ser, usado para enganar as contas, ou das empresas ou neste caso do Estado. (...) O que acontece é que estes contratos (...) são muito mais complexos. (...) E essa complexidade dá origem a dois problemas: quem está a vender sabe mais sobre o produto do que quem está a comprar - porque quem está a vender é o banco (...), que construiu esse produto; por último, à medida que o nível de complexidade destes produtos aumenta, aumentam também as perdas potenciais, sobretudo em períodos de volatilidade financeira - e por isso se fala que isto eram, não contratos de cobertura de risco, mas contratos especulativos. (...) É um bocadinho aquela ideia de que quando vamos ao casino a casa ganha sempre. Aqui também. Ou seja, nós fazemos uma aposta no casino, podemos ganhar (e o casino pode perder), mas no final do dia o casino ganha sempre porque é ele que domina as regras do jogo e as constrói em seu favor.»

Da entrevista do Nuno Teles à Radio France Internationale, que pode ser ouvida na íntegra aqui. E, neste contexto, vale também a pena recordar, uma vez mais, este esclarecedor post da Sara Rocha.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Economia política da política económica

É mesmo Portugal hoje, visto de 1943: Pedro Lains defende a actualidade de uma passagem do artigo de Michael Kalecki, saído em 1943, sobre os aspectos políticos do pleno emprego. Eu não conheço outro artigo que destile tanta sabedoria em tão poucas páginas. Economia política da política económica, no fundo. Note-se que Kalecki antecipou, em polaco no início dos anos trinta, algumas das ideias de Keynes sobre a importância da procura, fazendo a ponte entre Marx e Cambridge. A sua mensagem deve ser escutada pelos keynesianos bastardos, como lhes chamava a colega de Kalecki em Cambridge, Joan Robinson, os que tratam a economia como se fosse uma espécie de engenharia hidráulica, os que esquecem a política, a história e a incerteza radicais, mas também deve ser escutado pelos esquerdistas, os que acham que esta tradição não é mais do que um esquema sórdido para prolongar o tempo de vida do capitalismo. Kalecki argumenta que o pleno emprego é muito mais difícil de alcançar do que muita gente julga, dados os obstáculos políticos colocados pelas forças sociais que, no fundo, sabem que os trabalhadores ganhariam confiança para outros voos se a política económica apostasse no controlo das forças de mercado, indicação que ilumina as causas da opção pela austeridade. A democratização da economia é um processo que se decide nas lutas sociais que definem quem conduz as políticas públicas aqui e agora, no meio de uma crise de procura. Tudo o resto são contradições secundárias, digamos. De resto, não há por aí um bom tradutor com disponibilidade militante?

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Leituras

«Durante mais de uma década, os swaps foram o produto financeiro sexy por excelência. (...) Hoje é claro que, tal como os empréstimos subprime, os swaps são uma arma financeira de destruição maciça, um jogo de alto risco que foi literalmente vendido por partes interessadas e detentoras de mais informação e mais poder. (...) Não deixa de ser revelador que, cinco anos depois do deflagrar da crise, se assista a uma discussão sobre swaps que, no essencial, trata o problema como sendo sistémico e comportamental do lado do Estado (...) e apenas comportamental do lado do sistema financeiro (a ganância que moveu os banqueiros), quando, na verdade, o problema é sistémico dos dois lados. Um Estado que tem sido desnatado, em nome da austeridade, o que fragiliza objectivamente a capacidade de defender o interesse público, e um sistema financeiro que passou incólume por uma crise pela qual é responsável último.»

Pedro Adão e Silva, Uma verdade sistémica

«Para quem não se lembra, o BPN não estava cotado em bolsa. Por isso, só comprava ações do banco quem a administração convidava para tal. Foi assim com Cavaco Silva, que comprou e vendeu ações do BPN tratando diretamente do assunto com o presidente da instituição, Oliveira Costa. (...) Quer isto dizer que o presidente do BPN beneficiou quem quis - e beneficiou seguramente os seus amigos. (...) Se este caso revela alguma coisa é a podridão com que altas figuras do PSD ligadas ao Estado ganharam muito dinheiro com um banco fantasma que era liderado por uma grupo de malfeitores. E é esse dinheiro fácil que está agora a ser pago, com língua de palmo, por todos os contribuintes. Mais de 4 mil milhões de euros dos nossos impostos servem para pagar as mais-valias e os empréstimos não reembolsados que o BPN concedeu.»

Nicolau Santos, Quem se julga esta gente?

«Uma senhora de apelido Espírito Santo tentando, com certeza, uma graçola, terá dito que gostava dum determinado lugar porque era como brincar aos pobrezinhos. (...) Era capaz de me atrever a recomendar-lhe experiências mais próximas da realidade, mais radicais. (...) Se quiser mesmo uma coisa muito à frente, recomendo o desemprego. Mas o desemprego como deve ser. Aquele em que já passou o período de receber o subsídio. A experiência que cerca de 400 mil portugueses já estão a viver e que mais umas largas centenas de milhares estão prestes a sentir. A que à sensação de inutilidade, a que faz sentir que não se é capaz de obter o sustento pelos seus próprios meios, atira um cidadão para a mais profunda miséria. Viver como se já não fizesse parte da comunidade, como se comunidade ou cidadão fossem apenas palavras sem sentido ou conteúdo. (...) Entretanto, continuo à espera que gente com infinitamente mais responsabilidades que a alegre veraneante da Comporta venha também pedir desculpa por ter passado os últimos anos a insultar os portugueses acusando-os de terem andado a viver acima das suas possibilidades ou de serem sustentados pelos incansáveis trabalhadores do Norte da Europa.»

Pedro Marques Lopes, Do sol na moleirinha

«Em 2013, ano pior da nossa vida coletiva recente, ainda existe gente que continua a ter da pobreza uma imagem romântica, que o salazarismo consagrou ideologicamente e cinco anos de empobrecimento súbito recente não abalaram. "Pobre mas remendado", eis como Salazar via o país. E eis como Cristina Espírito Santo vê o "estado mais puro": "Pintei-a [à casa], renovei-a. Fiz uma boa casa de banho. Mas deixei a estrutura de origem, com colmo em determinadas zonas. Muito rústica. (...) É como brincar aos pobrezinhos". Os que retêm da pobreza a rusticidade e o pitoresco nunca viram um pobre. Não entraram numa mansarda sem água corrente, não mandaram os filhos para a escola sem uma refeição, não passam frio por falta de dinheiro para o aquecimento, não morreram de doença por não poderem pagar a taxa moderadora. Não conhecem o estigma do desemprego, nunca leram, viram ou escutaram a sociedade à sua volta.»

Filipe Luís, Brincar aos ricos

«Escrevo estas linhas numa aldeia ribatejana de fim de estrada, onde só se escuta a camioneta da carreira, até ao dia em que acabarem com isso também. E, no entanto, até aqui os ouço. Riem-se na minha cara. (...) Riem-se na sua cara, quem quer que você seja. Riem na cara da aposentada de Bragança, do funcionário público de Coimbra, do rapper da Brandoa, do comerciante falido do Porto, do desempregado e do emigrado e do pós-graduado que procura um bilhete low-cost para vir a casa. Riem-se na cara dos que tiveram que mudar de país por não mudar o país. (...) Eles riem-se na cara da classe média, da classe baixa e até da classe alta. Eles não têm medo da luta de classes, porque eles acham isso fora de qualquer cogitação: eles estão para lá de qualquer classe. No mundo deles, há regras especiais que são só para eles. Por isso riem-se de cada pedido de demissão: sabem que a oposição nunca se vai entender para mais do que pedir a demissão.»

Rui Tavares, Riem-se na sua cara

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Toda uma economia política

É preciso repetir uma pergunta que é toda uma economia política: se Cavaco Silva e sua filha compraram acções da SLN a Oliveira e Costa por um euro, revendendo-as ao mesmo Oliveira e Costa por 2,4 euros, por que é Rui Machete, também com bons contactos e com as mesmas motivações, não faria o mesmo? A diferença residiu só no montante de acções e de mais-valias, numa operação em que os preços também foram definidos por razões que só os envolvidos conhecem: as acções nem sequer eram transacionadas nos tão adorados quanto evitáveis mercados. Bancarrotocracia. Entretanto, o mundo da bancarrotocracia é mesmo pequeno, como bem se tem sublinhado na câmara corporativa a propósito também do novo “mister swaps” que coadjuva a “miss swaps” no governo. Sempre a bancarrotocracia.

O mundo do poder político dos bancos-zumbi permite sublinhar vários pontos contra a economia política globalista, a que só vê anónimas lógicas de mercados globais que supostamente transcendem os Estados e as ancoragens sociais e territoriais de toda a actividade económica, incluindo a financeira. Em primeiro lugar, os Estados são centrais na finança neoliberal, tanto na criação das condições regulatórias para a sua emergência como na sua perpetuação em tempos de crise. Em segundo lugar, as redes sociais são decisivas; trata-se de uma pequena elite nacional que circula por aí, uma casta, na realidade, bem posicionada nos nós de passagem do dinheiro, no aproveitamento da opacidade gerada por esta finança. Em terceiro lugar, a imbricação entre poder político e poder económico não é defeito, mas sim feitio do tóxico regime económico. De facto, a influência política é a continuação da concorrência pelos mesmos meios, quanto mais intensa a segunda mais forte a primeira. Isto é sobretudo assim quanto maior for o grau de discricionariedade de operadores financeiros ditos privados, a sua capacidade para gerar e transferir custos sociais para terceiros, e quanto menor for o grau de autonomia do Estado face a estes.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Salvação nacional?


1. Fez ontem um mês que Vítor Gaspar apresentou, através de carta tornada pública pelo próprio, a demissão a Passos Coelho. Ao contrário do que tem sido dito, o ex-ministro das Finanças não reconheceu, com a sua demissão, o falhanço da austeridade. Para Gaspar, o que falhou foram outras coisas: não houvesse democracia, com as suas insolentes instituições (Tribunal de Contas) e as suas amplas liberdades (manifestações) e tudo correria bem; não fora a liderança incompetente do primeiro-ministro (incapaz de impor a TSU e de pôr ordem no governo e na coligação) e tudo teria andado nos eixos; não fora uma «inesperada» quebra excessiva da procura interna (fruto de incontroláveis «intempéries» e «ventos desfavoráveis») e o plano teria funcionado como vem nos livros e nas folhas de excel. A economia de um país em concreto - e onde há pessoas - é que estorva tudo: na lua o programa de ajustamento teria corrido às mil maravilhas.

2. Todos os episódios surreais que se sucederam à saída de Gaspar ajudaram a ir desviando a atenção do essencial: a demissão do ministro constitui, em todo o seu esplendor, uma irrevogável certidão de óbito passada à austeridade (agravada nas suas consequências pelo afinco em «ir além da troika»). Gaspar não o assume nesses termos, mas a sua receita fracassou: pela sua própria natureza, não serviu, não serve e não servirá para nenhuma espécie de consolidação, de ajustamento ou de retoma. A comparação entre as previsões inscritas na versão inicial do Memorando com o resultado obtido dois anos depois apenas confirmam essa evidência. De facto não se trata, ao contrário do que Cavaco Silva tentou sugerir no discurso do 25 de Abril, de simples «falhas nas estimativas». Trata-se da consequência, palpável, de uma abordagem errada (tanto na teoria como na prática) e que por isso não resolve, antes agrava, a crise. Cavaco sabe-o bem e há muito tempo.

3. O elemento central da crise política é pois o demonstrado fracasso da austeridade. E por isso a única tomada de posição, consciente e responsável, digna de um imperativo de «salvação nacional», teria sido a de pedir contas ao governo e à própria troika, afirmando que a sangria inútil não mais poderia prosseguir. Que um governo sem qualquer escrúpulo, e ávido por poder continuar a chafurdar no pote, não tenha esse sentido de responsabilidade e de decência, não surpreende ninguém. Que um presidente alinhe pelo mesmo diapasão, fingindo que nada se passa e que o caminho é continuar a escavar o buraco, de modo a agradar à tutela externa, só surpreende quem possa desconhecer que é Cavaco Silva o actual inquilino de Belém. Nesta matéria, os seus primeiros sinais, logo após a demissão de Gaspar, foram inequívocos: aceitou de imediato dar posse a Maria Luís Albuquerque (assegurando a prossecução do desastre) e procurou, já depois da demissão irrevogável de Portas, amarrar o PS ao andor do memorando e do pós-troika. Como se a crise não fosse mais do que uma fractura que se abriu no vaso da coligação e que a cola socialista ajudaria a remendar e reforçar.

4. Mas para a história ficará também o entendimento singular que Cavaco Silva tem da democracia, mesmo em tempos de salvação nacional. Para não marcar eleições antecipadas (o único mecanismo consistente e credível de clarificação política - e capaz de permitir inverter a queda para o abismo), o presidente não só decidiu ignorar o divórcio crescente entre o governo e o povo, como determinou que o «compromisso de salvação nacional» apenas se faria com PP, PSD e PS, recorrendo ao argumento de que estes partidos «representam 90% dos Deputados à Assembleia da República». Para Cavaco, as sondagens não contam para demonstrar que BE e CDU até já significam, hoje, 20% do eleitorado. Mas já valem para afirmar que a antecipação de eleições elevaria «o grau de incerteza e a falta de confiança dos agentes económicos e dos mercados no nosso país», perante o cenário - tido como altamente provável - de que nenhum partido alcançasse a maioria absoluta, ou de que não fosse possível encontrar acordos partidários estáveis.

Mas não se preocupem, pois o presidente garantiu que vai estar atento e vigilante, mesmo que se estejam a reforçar os sinais de coerência, insuspeição e integridade deste governo.