quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Os cães, os gatos, os «guiões de reforma do Estado» e a direita que não se leva a sério

Há cerca de uma semana, foi o número promovido por deputados da JSD, que propuseram referendar a coadopção por casais do mesmo sexo. O objectivo era, evidentemente, distrair as atenções da opinião pública de mais um Orçamento de Estado que não resolve, antes agrava, os problemas do país. Há dois dias, a iniciativa coube ao CDS-PP, que pela mão da ministra Assunção Cristas avançou com uma nova palhaçada para distrair as massas da discussão orçamental, lançando para a praça pública a ideia de uma nova lei com restrições ao número de cães e gatos por apartamento.

Não deixa de ser curioso que partidos supostamente liberais - e que por isso repudiam, por natureza, a omnipresença do Estado - queiram que este espete o nariz na casa das pessoas, ao ponto de estabelecer um limite de animais de estimação por metro quadrado. Nada que seja, contudo, propriamente novo nem estranho.(*) Sabemos bem, de facto, que no que toca à relação do Estado com os cidadãos, a direita que nos governa é muito selectiva: ao mesmo tempo que defende a livre iniciativa na economia e o mercado sem restrições, pugna por um Estado com mão-de-ferro em matéria de comportamentos, costumes, códigos de conduta e escolhas dos cidadãos (como demonstram as posições em matéria de criminalização da interrupção voluntária da gravidez, orientação sexual, eutanásia ou consumo de estupefacientes).

Esperar-se-ia à partida, portanto, que pelo menos nas questões económicas a maioria de direita fosse coerente com o liberalismo que apregoa. Desiludam-se. Basta lembrar, por exemplo, a justificação dada pelos deputados Virgílio Macedo (PSD) e Hélder Amaral (CDS-PP) na discussão do Orçamento de Estado de 2013, sobre a necessidade de manter o IVA de 23% na restauração. Em seu entender, não se tratava de uma forma de obter mais receitas fiscais mas sim de regular, através do Estado, «o excesso de oferta». Ou seja, tudo ao arrepio da máxima difundida aos sete ventos, segundo a qual o mercado, quando liberto das constrições impostas pelo Estado, se auto-regula.

A terceira tentativa de distracção da atenção da opinião pública aconteceu hoje e foi protagonizada por Paulo Portas, com a apresentação do «Guião da Reforma do Estado». Não é este o momento para analisar o famigerado documento, cuja data escolhida para a sua apresentação pública (um dia antes do início da discussão do OE de 2014) já diz muito sobre a importância que o vice-primeiro-ministro atribui ao fardo incómodo que carrega há meses. Apenas valerá a pena assinalar, neste contexto, que as propostas em matéria de educação confirmam uma vez mais o real entendimento que esta direita que não se leva a sério, e os interesses que representa, têm sobre a iniciativa privada entre nós: sempre e sempre abrigada à sombra do Estado, refastelada a sorver, alarvemente, o dinheiro dos contribuintes.


(*) Durante a ditadura, na cidade do Porto, os fiscais dos bairros camarários tratavam de controlar zelosamente os mais ínfimos pormenores do quotidiano dos moradores. Nas fichas em que reportavam as ocorrências que entendiam ser dignas de registo (e para além de «apontamentos» sobre a vida amorosa dos residentes), podiam encontrar-se anotações como as seguintes: «tem uma galinha ilegal», «deu o cão», «possui animais», «frangos a divagar», «não retirou as andorinhas de casa», «autorizada a ter uma cadela», «tem dois pintos o que não é permitido» [Alexandre Alves Costa, Álvaro Siza, Carlos Guimarães, Eduardo Souto Moura, Manuel Correia Fernandes (1979), «SAAL/NORTE - Balanço de uma experiência», Revista Cidade/Campo, nº2. Porto: Edições Ulmeiro (pág. 29)].

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