segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

China, expoente do capitalismo



A história recente da economia chinesa é uma síntese, no tempo e no espaço, da história do capitalismo.

Num artigo famoso publicado em 2011, o economista malaio-britânico Danny Quah procurou identificar a localização do "centro de gravidade" da economia mundial e a forma como este tem vindo a deslocar-se ao longo do tempo. Trata-se de um problema simples de enunciar mas ao qual, devido a uma série de dificuldades metodológicas, é mais difícil dar resposta.
Os leitores mais interessados pelo tema podem obter informação mais detalhada seguindo o link em cima, mas em termos resumidos os passos seguidos por Quah foram os seguintes: primeiro, criou uma grelha constituida por um conjunto de 700 pontos na superfície do globo. Depois, associou a cada um desses pontos a parte do PIB mundial correspondente à região centrada nesse ponto. Em seguida, procedeu à soma ponderada das coordenadas (tridimensionais) desses 700 pontos, utilizando a parte respectiva do PIB mundial como ponderador. O resultado foi um ponto único (o "centro de gravidade"), localizado no interior do planeta, relativamente mais próximo dos pontos à superfície onde se concentra uma maior proporção da actividade económica mundial. Finalmente, projectou esse centro de gravidade tridimensional na superfície terrestre de modo a torná-lo mais inteligível, utilizando para o efeito uma projecção bidimensional cilíndrica da superfície do globo.
O resultado que obteve pode ser consultado na figura 2 do artigo indicado em cima - ou directamente  aqui. Tal como estimado desta forma, o centro de gravidade da economia mundial em 1980 encontrava-se no meio do Atlântico, nas proximidades da Madeira e dos Açores - não devido ao excepcional dinamismo económicos destes últimos, claro está, mas devido à concentração desproporcional da actividade económica mundial nos EUA e Europa. Em 2010, porém, esse mesmo centro de gravidade encontrava-se já no Mediterrâneo Oriental. E em 2050, no final do período de extrapolação, prevê-se que venha a situar-se em pleno coração da Ásia. Esta figura é, com certeza, uma das representações mais sintéticas e intuitivas de uma das principais dinâmicas que têm caracterizado a economia mundial no final do século XX e no século XXI: a ascensão da Ásia Oriental à liderança económica do planeta.

Para esta ascensão gradual contribuíram a modernização e dinamismo económicos do Japão, que na verdade remontam à era Meiji do final do século XIX; o milagre económico dos vários "tigres", ou "dragões", asiáticos (Coreia, Singapura, Hong Kong, Taiwan) no pós-2ª Guerra Mundial; e mais recentemente o crescimento fulgurante das economias da Malásia, Indonésia, Filipinas e Tailândia (também conhecidos como os "pequenos tigres", ou "tiger cubs"). Mas o elemento mais preponderante de todos para explicar a inexorável deslocação para leste do centro de gravidade da economia mundial é, sem dúvida, a extraordinária transformação e expansão económica da China ao longo das últimas três décadas e meia.
Vários autores têm assinalado que a ascensão da China ao estatuto de maior economia mundial não tem nada de extraordinário, na medida em que vem apenas colocar um ponto final no breve interlúdio de pouco mais de um século, esse sim extraordinário, durante o qual a China não foi a maior economia mundial. Falamos aqui de dimensão absoluta, de produção total, e para isso é óbvio que a dimensão territorial e populacional da China é preponderante. Mas os trabalhos de historiadores económicos como Angus Maddison sugerem que a China se encontrava à frente da Europa mesmo em termos relativos, de produto per capita, até ao século XIV.
Claro que esta análise é algo enganadora, na medida em que o que teve lugar do século XIV em diante no Ocidente envolveu uma mudança qualitativa fundamental, em termos de organização social, face aos séculos e milénios anteriores: a emergência e expansão do capitalismo. Ora, é essa mesma emergência e expansão que, aplicada agora ao caso chinês, explica a re-deslocação para oriente do centro de gravidade da economia mundial nas últimas três décadas e meia. É uma história fascinante, que resiste às análises simplistas e desafia o maniqueísmo.
Trata-se da mais acelerada instância de expansão do capitalismo da história, em termos dos milhões de pessoas que passaram a ser sujeitas às lógicas do trabalho assalariado e da dependência do mercado para assegurarem a sua subsistência. Trata-se, também, do mais acelerado processo de redução de pobreza da história da humanidade: segundo algumas estimativas, 680 milhões de pobres a menos entre 1981 e 2010. Trata-se, ao mesmo tempo, de um processo que tem sido caracterizado por uma enorme desestruturação social; por um aumento brutal da desigualdade; pela maior migração em massa da história, do interior rural para as áreas urbanas concentradas sobretudo na faixa litoral sudeste; e pela extracção de recursos naturais e emissão de poluentes a uma escala gigantesca. E tudo isto no contexto de um regime político fortemente autoritário e repressivo.
Trata-se, no fundo, do pacto faustiano do capitalismo concentrado no tempo e no espaço: dinamismo das forças produtivas e expansão do bem-estar material sem precedentes, por um lado; violência estrutural, desigualdade social e devastação ambiental, por outro. Com a particularidade notável e porventura irónica deste processo extraordinariamente acelerado de expansão capitalista ter sido conduzido por um partido dito comunista. Pois a China que tem vindo a ser construída nos últimos trinta e cinco é tudo menos comunista, claro está, pelo menos se o controlo colectivo e democrático dos meios de produção contar como critério. Na China, esse controlo é maioritariamente privado ou, em alternativa, oligárquico - mas dificimente pode ser considerado colectivo e seguramente não pode ser apelidado de democrático. Pelo contrário: se o que define o neoliberalismo é a inexorável remoção das barreiras sociais à valorização do capital, então Deng Xiaoping, que em 1979 liderou este processo de libertação do génio capitalista da garrafa ao mesmo tempo que proclamava "enriquecer é glorioso", merece certamente um lugar ao lado de Reagan e Thatcher no panteão neoliberal.
Mas a história não acaba aqui, pois claro. À medida que tem vindo a tornar-se um epicentro do capitalismo, a China tem também vindo a tornar-se um palco central da luta de classes à escala mundial. De há alguns anos para cá, e apesar das restrições decorrentes do carácter repressivo do regime, a organização dos trabalhadores e os protestos sindicais têm vindo a registar uma enorme expansão. As greves e protestos sindicais realizados hoje em dia na China medem-se às centenas em cada mês. Em Abril de 2014, 60.000 trabalhadores entraram em greve só no complexo de fabrico de sapatos Yue Yuan International, o maior do mundo, que produz ténis para empresas como a Nike, a Adidas ou a Puma.
E esta luta social tem produzido resultados. Devido à crescente mobilização sindical, por um lado, e ao esgotamento gradual do exército de reserva de mão-de-obra rural, por outro, as condições de trabalho na China têm vindo a melhorar significativamente. Segundo publicou o Financial Times há já quase dois anos, a remuneração horária média dos trabalhadores chineses multiplicou-se por seis ao longo da última década, tendo já ultrapassado, por exemplo, a dos trabalhadores mexicanos.
É certo que há ainda outras fronteiras por abrir e outras reservas de mão-de-obra por explorar pelo mundo fora, mas a evolução recente da economia chinesa mostra o que tende a suceder, em termos de ascendente dos trabalhadores, quanto as fronteiras de expansão do capitalismo começam a esgotar-se.
Temos assim uma situação muito curiosa: o capitalismo chinês, esse expoente do neoliberalismo, depois de ter desempenhado um papel central no enfraquecimento da posição dos trabalhadores do Ocidente ao longo de décadas de offshoring, pode representar agora, no longo prazo histórico, um horizonte de esperança para os trabalhadores de todo o mundo.
Profundamente contraditório, pois claro. O capitalismo é mesmo assim.
(publicado originalmente no Expresso online)

8 comentários:

Luís Lavoura disse...

uma projecção bidimensional cilíndrica

Porquê uma tal projeção? Porque não uma projeção esférica, desde o centro do globo para a sua superfície?

Esta projeção não faz sentido nenhum.

Jose disse...

«...um horizonte de esperança para os trabalhadores de todo o mundo»
Se bem percebi, o génio do capitalismo está na origem do progresso e enriquecimento geral mas gera desigualdades.
A grande esperança dos trabalhadores é acabar com o processo que lhes trouxe o bem-estar?
Eu diria que a ambição dos dirigentes dos trabalhadores de se porem no lugar dos desiguais do capitalismom foi prudentemente resolvida na China pelo que lhes advem de manterem o poder político ditatorial.

Anónimo disse...

Lavoura, tonto, faz todo o sentido para projetar num mapa plano, como no link do post.

Anónimo disse...

Há algum tempo (já não sei onde li ou ouvi) dizia-se que o primeiro milénio foi do Meiterraneo, o segundo do Atlântico e o terceiro será do Pacífico...

Anónimo disse...

É engraçada a maneira como nível de actividade económica é tido como sinónimo de capitalismo. Como teoria é fracote, mesmo que hoje o capitalismo seja o modo de produção dominante. Leviandade teórica, falta de reflexão? Só uma questão quer espero não gere uma montanha de escaldadantes "comentários".

Anónimo disse...

Bem, em primeiro lugar não sei até que ponto se pode chamar ao que se passa na China capitalismo.

A utilização de mecanismos de mercado, nomeadamente no que respeita à formação de preços, não é um mecanismo que tenha obrigatoriamente de estar conotado com o sistema capitalista.

Em segundo lugar, o Estado chinês controla directamente (estado central ou regiões e cidades) ou indirectamente (através dos oligarcas) uma parte significativa da capacidade produtiva.

Portanto, mesmo admitindo a existência de capitalismo, o mesmo é bastante diferente do típico capitalismo ocidental que tem por base os EUA e o Reino Unido.

No que respeita à evolução do produto, isso deve-se à transferência de recursos de sectores de baixa produtividade como a agricultura para sectores com elevada produtividade como a indústria. Tudo isso apoiado numa estratégia de aumento da taxa de investimento (FBCF) e da aquisição de tecnologias em áreas relevantes através da promoção da I&D. Nada disto tem a ver com a chamada mão invisível do Adam Smith mas sim com um esforço que é liderado pelo Estado. Ou seja, o modelo de crescimento da R.P. da China apresenta mais semelhanças com o modelo soviético do que com o modelo ocidental. Claro, há diferenças nomeadamente a questão da atracção de IDE mas os grandes processos de planeamento econónico são liderados pelo Estado e não pelo sector privado.

Daniel Carrapa disse...

A China utilizou 6,6 gigatoneladas de cimento nos últimos três anos. Os Estados Unidos utilizaram 4,5 gigatoneladas de cimento nos últimos cem anos.

Os bancos Chineses criaram uma dívida (emissão de crédito) equivalente a 24 biliões (milhão de milhões) de dólares desde 2001. Criaram uma dívida equivalente a 15 biliões de dólares em apenas cinco anos.

Ao todo, os bancos americanos demoraram 100 anos a emitir 15 biliões de dólares de dívida.

A China criou a maior bolha financeira da história.

Talvez seja a última.

Anónimo disse...

Para Daniel Carrapa:

E tudo isso quando a China ainda está no início do processo, mesmo se a PPP a sua economia já seja a maior do Mundo, no início do processo, quero dizer com um Produto per capita bastante baixo (o 89 do Mundo acho eu)