sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Quando todos fingem que o euro pode sobreviver


Ao longo do ano de 2014 a economia da zona euro foi-se afundando na estagnação, acompanhada por uma desinflação que progressivamente se encaminhou para a deflação. Com um crescimento real anémico, o PIB tende a reduzir-se em termos nominais. Tal significa que o peso das dívidas, em percentagem do PIB, mais juros acumulados, ganha uma dinâmica alarmante e insustentável. Mario Draghi bem alertou os governos da zona euro para a necessidade de uma intervenção mais enérgica da política orçamental para relançar a economia, mas apenas obteve do presidente da Comissão um plano de investimentos construído sobre engenharia financeira. Só os europeístas lunáticos não viram que era apenas propaganda para camuflar o veto da Alemanha a qualquer política orçamental europeia pró-crescimento.

Nos últimos anos, o clamor dos protestos contra a austeridade não produziu mais que um fechar de olhos da UE à derrapagem no cumprimento dos objectivos do Tratado Orçamental, aliás uma forma de amaciar os efeitos perversos da política adoptada. Já as expectativas dos especuladores quanto ao reembolso dos seus créditos mereceu a maior atenção. Temendo o efeito bancarrota de uma deflação instalada, os "mercados" clamaram por uma intervenção do BCE (QE - Quantitative Easing) para que compre em larga escala títulos de dívida pública na posse dos bancos. Hoje quase todos os observadores qualificados assumem que esta intervenção não tem condições para salvar a zona euro [ver Richard Koo]. Em primeiro lugar, porque o aumento da liquidez na posse dos bancos não se converte automaticamente em aumento do crédito às empresas e famílias num tempo de grande incerteza. Ou seja, não se traduz num aumento de procura efectiva capaz de fazer subir os preços. Ainda assim, nas instituições da UE todos fingem que esta é a grande arma que vai travar a implosão do euro.

Em segundo lugar, os bancos não vão guardar a liquidez em depósitos no BCE porque teriam de pagar juros, em vez de receber. Também não vão ficar com ela imobilizada. Vão aplicá-la em activos de natureza diversa, o que alimentará bolhas especulativas na bolsa e no imobiliário, na Europa e noutros continentes. Temendo o afluxo em grande escala de mais euros, a Suíça e a Dinamarca já anteciparam medidas defensivas. Assim, em resultado da saída de capitais, o euro está a desvalorizar a um ritmo considerável, de que resultará o agravamento do excedente comercial da Alemanha e a agudização da guerra global de moedas já em curso. Ainda assim, a Alemanha vive na ilusão de que todos os países podem ter excedentes, assim se esforcem.

Em terceiro lugar, o clamor da opinião pública alemã e seus partidos maioritários contra a execução de um QE numa escala significativa vai gerar receios nos mercados financeiros quanto à viabilidade do euro, dados os efeitos colaterais que terá na esfera jurídica. É importante não esquecer que as decisões do Tribunal Constitucional alemão vinculam as instituições alemãs, incluindo os representantes do Bundesbank no BCE, mesmo que o Tribunal de Justiça da UE considere que o QE é compatível com os Tratados da UE. Que fique bem claro para os europeístas lunáticos: a Alemanha cumpre as normas europeias, mas apenas na medida em que são compatíveis com a sua Constituição. Na verdade, não haveria riscos para o contribuinte alemão com a compra de dívida dos países da periferia feita pelo BCE, dado que se trata do banco emissor da moeda. Ainda assim, os contribuintes alemães acreditam que um banco central pode ir à falência e boa parte das elites alemãs partilha essa ignorância, ou pelo menos finge bem.

Num contexto em que ninguém ao mais alto nível quer enfrentar o problema da inviabilidade da moeda única, resta esperar uma resposta corajosa do povo grego à chantagem a que foi sujeito nas últimas semanas. E esperar também que o Syriza esteja à altura do desafio que lançou à Alemanha. Afinal de contas, a crise do euro é sobretudo uma crise política que dramaticamente tarda em chegar ao fim.

(O meu artigo no jornal i)

11 comentários:

magoal disse...

A decisão do B.C.E.chegou atrasada e condicionada, timidamente, pela Alemanha, ao responsabilizar os Bancos nacionais do pagamento de 80% dos financiamentos previstos, do referido Banco, sem ter em consideração, que o elevado nível de endividamento desses países se deve à criminosa politica de austeridade, influenciada, ditatorialmente, por essa prepotente e autoritária Alemanha. No entanto, trata - se de uma medida, imperiosamente, necessária, ainda que fragilizada, do B.C.E.

brancaleone disse...

Caro Magoal, o problema do endividamento da periferia europeia tem a ver com a divida PRIVADA externa, divida privada que só foi possivel acumular "graças" ao euro.
A austeridade serviu e serve para pagar esta divida, que foi parcialmente "socializada" durante estes anos tornando-a pública.
Ora, numa crise de divida privada é necessario salvar os bancos, e este QE é mais uma medida para ajudar os bancos da periferia que compraram um monte de titulos a juros baixissimos atraves das operações LTRO (A ultima, olha a coincidencia, era de 36 meses e acaba agora em Fevereiro) e agora vão revender os mesmos titulos, que no entanto subiram, ao proprio BCE...
A austeridade não pode e não vai poder acabar.
A unica maneira para renunciar parcialmente a austeridade seria sair do €, desvalorizar a moeda, e negociar um emprestimento a FED ou ao FMI.
Isto pelo menos salvaria a democracia, o estado social e o emprego.

António Geraldo Dias disse...

Não é possível resolver o problema da deflação sem resolver o da dívida ainda que seja possível adiar os dois os objectivos do BCE não serão cumpridos e a situação da dívida pode até agravar-se para além de uma operação mediática de efeitos imediatos com alvos precisos mas pouco transparentes cujas consequências podem exacerbar tendências especulativas num cenário de austeridade selectiva e fractura social.

Anónimo disse...

"A unica maneira para renunciar parcialmente a austeridade seria sair do €, desvalorizar a moeda, e negociar um emprestimento a FED ou ao FMI."

Podia fazer-se o mesmo mudando as regras do euro, alternativa ew mudanças que os partidos do bloco central oficial se recusam fazer, mesmo que haja lá dentro quem há muito tenha visto o filme.

Daniel Carrapa disse...

Não sou economista e por isso as questões que coloco são apenas a título de dúvida metódica. De igual modo, não sendo especialista, tenho dificuldade em tirar conclusões sobre a viabilidade do Euro, dada a complexidade de factores em presença.

A primeira questão que coloco é esta: ainda não vi ninguém estabelecer uma correlação entre o Plano Juncker e a medida de QE por parte do BCE. O que me parece é que o QE começa por ser a moeda de troca dada aos bancos privados para embarcarem no plano de investimento traçado pela Comissão, alavancando em 300 mil milhões de Euros os iniciais 26 mil milhões disponibilizados pela CE.

Segunda questão. O BCE irá comprar títulos de dívida pública europeia que estão na posse e são activos da banca europeia.
Significa isto uma efectiva transferência dessa dívida pública para a gestão do BCE? O que acontecerá quando esses títulos vencerem as maturidades? Passarão os Estados a "rodá-los" junto do BCE, ou ver-se-hão na contingência de voltar a financiar-se nos mercados (banca privada), regressando assim à condição inicial? - Confesso que as minhas limitações técnicas podem significar falta de entendimento deste mecanismo, mas fica a questão.

Terceiro ponto, sublinhado neste post. Os bancos privados verão reforçadas as suas reservas, o que pode viabilizar nova disponibilidade para emissão de novo crédito privado. Mas quem o vai absorver? O texto fala em "bolhas especulativas na bolsa e no imobiliário".
No que respeita ao imobiliário, parece evidente que para muitos países em fraco crescimento isso não será possível, pela incapacidade dos particulares absorverem mais crédito, ou seja, mais dívida. Não há mercado.
Diga-se que tal nem seria desejável, afinal é o que nos trouxe aqui.

Por outro lado, temos um real problema de endividamento das empresas, e na ausência de crescimento, não há capacidade de absorver crédito para investir num mercado que não existe.

Resta assim o cenário que foi observado nos processos de QE na Inglaterra e nos EUA - em que a maioria do crédito gerado foi canalizado para empresas do sector financeiro e, em segundo plano, na franja restrita do imobiliário de luxo.

Ou seja, arriscamo-nos a não ver efeitos práticos desta medida de QE pelo BCE na economia real, nos particulares e nas empresas não financeiras.

De resto, o que está aqui subjacente, é um mecanismo que pretende viabilizar o mesmo modelo monetário - geração de money stock através de emissão de crédito (dívida) pela banca privada. O que, mesmo que tenha sucesso, não deixa de ser aquilo que é descrito como "dar um pontapé na lata" - empurrar o problema estrutural uns anos para a frente, até que a continuidade do empobrecimento e agravamento de crise social venha a por em causa a coesão da própria UE.

Estarei a ver mal? Como disse no início, deixo esta dúvida metódica.

Abraço.

Ricardo disse...

Tudo o que possa ser feito dentro deste sistema será apenas para manter o status quo(digam o que disserem)e evitar um reset que permita um novo começo,mas sabem o que significava não sabem?O fim dos banksters e das elites(de Davos,Bilderberg,Washington,Londres,Berlin,Paris etc)ocidentais.Aliás o que estamos a ver e a sentir nos últimos anos insere-se numa guerra(económica,financeira e política global)mais vasta entre o poder estabelecido no ocidente e a emergência do oriente(brics)e na qual se insere a questão ucraniana e o caos fomentado no oriente médio.Dixit

Ricardo disse...

check this http://eclinik.co/2015/01/23/switzerland-adds-to-list-of-countries-dumping-dollar-euro/

HY disse...

O autor refere-se várias vezes aos" europeistas lunáticos" no texto. Quer isto dizer que, no seu entendimento, há "europeistas não lunáticos", ou uma coisa implica necessariamente a outra?

Unknown disse...

A Alemanha vai apoiar QE. Oitenta por cento da divida dos paises passa para o BC do próprio país deixando de pesar no esforço comum onde a Alemanha contribui com mais naturalmente, pois é mais poderosa e produtiva.
O Draghi não prometeu fornecer gestores competentes (isso é com cada qual), só fornece o dinheiro; o que já é uma boa viola para quem sabe tocar claro.

José disse...

Mas por que razão não pode o Euro sobreviver? Que evidências existem que levem a concluir que não pode?

Anónimo disse...

Os cábulas , quando amedrontados com a sua ignorância, utilizavam os mais variados pretextos para fugirem ao confronto com essa mesma ignorância.

Um fulano vir nesta altura do campeonato interrogar-se porque motivo o euro não pode sobreviver e pedir evidências é um fulano que ou está distraído e ignora toda a produção teórica explanada (aqui e noutros sítios), ou um fulano que é por demais preguiçoso ( cábula) e necessita de resumos escolásticos, ou um fulano de tal forma enredado na defesa acéfala e quase idiota da sua doutrina neoliberal que só de a ver posta em causa desperta este processo de fuga infantil.

Mais estudo.Mais humildade.E menos reflexos germanófilos à portas ou à passos

De