quinta-feira, 30 de junho de 2016

Amanhã: Seminário comemorativo dos 20 anos do RMG/RSI


Decorridos 20 anos (1996-2016) após o lançamento dos projetos-piloto do Rendimento Mínimo Garantido (RMG), o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) realiza um conjunto de iniciativas que visam assinalar a introdução daquela que se tornou na medida mais emblemática - e mais controversa também - da "nova" geração de políticas sociais ativas em Portugal.

A primeira destas iniciativas realiza-se amanhã, 1 de julho, com um Seminário no Auditório do Citeforma (Av. Marquês de Tomar, 91, em Lisboa). A abertura, às 9h30, estará a cargo de José António Vieira da Silva (Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social), seguindo-se as intervenções de Paulo Pedroso (Como estudámos e como decidimos?), Edmundo Martinho (Como implementámos?) e José Luís Albuquerque (Retratos de 20 anos de RMG/RSI). Às 11h15 tem início um debate moderado por Elisabete Miranda e que conta com a participação de Carlos Farinha Rodrigues, Fernanda Rodrigues, Renato Miguel do Carmo e Cláudia Joaquim (Secretária de Estado da Segurança Social).

Saídas limpas, bons alunos, pressões e perseguições


«Qualquer pessoa com dois dedos de testa económica sabe que o que o Governo português está a fazer vai dar resultados positivos no défice. Controlar o défice público nunca foi um problema, excepto em situações de grave crise financeira internacional. É simples e claro. A austeridade é estúpida porque é mesmo assim. Chega, comprime a economia, reduz o défice externo e dificulta a correcção do défice público, mas, quando é retirada, descomprime a economia e, por essa via, etc., etc. Daí a pressão. Caso contrário, para quê fazê-la? Se tivessem a certeza de que as coisas irão dar mal resultado, ficariam calados. Essa pressão é clara.
Não foi por acaso que Schauble falou depois de o FMI ter estado em Portugal e que o FMI esteve em Portugal na véspera de uma cimeira europeia em que Schauble iria falar. Que esta gente sem escrúpulos faça disto, ainda se percebe, pois eles são só isso. Que essa gente tenha colaboradores internos solícitos, nas televisões e nos jornais, já se percebe menos. Entretanto, deve ser quase desesperante governar assim, sob indevidas pressões, de agentes externos, de colaboradores internos, mas tem de ser. E deve ser muito difícil para as pessoas, que podem não perceber bem o que se está a passar, serem assustadas quotidianamente desta maneira.
Que país é este? Ponham a mão na consciência. Muitos dos colaboradores internos porventura não saberão o que estão a fazer. Então, perguntem ao vizinho de baixo, ao homem do café, que eles talvez expliquem. Quando é que isto vai acabar? Quando é que Portugal vai dar a voz que deve dar nesta Europa todos os dias mais um bocado de pantanas. A conversa sobre as "multas", sobre outro "resgate", sobre o "corte dos fundos estruturais" são, simplesmente, conversas de perseguição, de pressão, de gente que tem determinados intuitos políticos, de indevido controle político. Pense-se nisso. E não se colabore.
»

Pedro Lains, A pressão

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Uma modesta proposta euro-liberal


Agora que se confirma que um número significativo de intelectuais ditos de esquerda é euro-liberal, olhando de cima para a populaça ignara, acho que é altura de fazer uma proposta para os próximos referendos, incluindo o britânico, se o tal projecto medo vencer, garantindo resultados racionais e minimizando as emoções dúbias a que os de baixo são atreitos.

Antes, porém, devo notar que o liberalismo dominante só se conciliou com a democracia tardiamente, ao longo do século XX, sendo essa conciliação altamente forçada pelos de baixo e relutante, procurando muitos, desde cedo, pensar em entraves institucionais à perigosa expressão da soberania popular e dos direitos socioeconómicos que lhe estiveram associados. A UE é um desses eficientes entraves no continente.

No espírito da sua conservação, e em linha parcial com propostas e práticas liberais do passado, proponho a reinstituição do voto plural para os próximos referendos. Qualquer coisa deste género: todos têm direito a um voto, claro, estamos no século XXI, mas à medida que se sobe nos rendimentos, nos últimos três decis, tem-se direito a mais um voto por decil e o último percentil, lá bem cima, a mais um; os jovens, entre os 18 e os 40, a mais um; os que vivem em cidades a mais um; os que têm a licenciatura ou mais graus a mais um (um por grau adicional); os que recebem ou receberam dinheiros da UE a mais um (aqui há uma distorção ao espírito da tradição, mas é de euro-liberalismo que se trata).

Por exemplo, um jovem professor da London Business School, com consultorias na banca da City londrina, doutorado em finanças, teria direito a 11 votos. Um velho operário reformado de uma vila pós-industrial, perdida lá no norte de Inglaterra, teria direito a um e já seria bem bom. Isto poder ser adaptado e simplificado, claro. É fazer os estudos por país, parece que ainda há realidades nacionais distintas, garantindo que o resultado seja sempre o racional. Por exemplo, no sul da Europa, os jovens não são de confiar.

Em alternativa, é sempre possível promover golpes de estado, dos financeiros, como na Grécia do oxi, ou dos outros. Esta opção é tendencialmente só para o sul da Europa, claro.

Posição sobre o Brexit da Democracia Solidária


Desde o Tratado de Maastricht que os directórios burocrático-políticos de Bruxelas tudo fizeram para impedir que a decisão democrática dos povos tivesse a mínima influência sobre as etapas daquilo a que se chamou «construção europeia». Não se podia correr o risco de esclarecer democraticamente os cidadãos e de os auscultar quanto a uma agenda política que, na verdade, lhes iria negar alguns dos seus direitos mais elementares. Em especial neste Sul da Europa, onde a abdicação da soberania monetária e orçamental foi feita à revelia de qualquer referendo e conduziu à erosão do frágil Estado Social que fomos construindo.

Tudo isso aconteceu porque muitos cidadãos, hipnotizados pela ideologia europeísta e globalista, foram consentindo na entrega da soberania nacional a uma cúpula de serventuários de interesses, em nome de uma cada vez maior união política destinada a anular por completo a capacidade de autodeterminação dos povos. Aliás, se há mensagem a reter da bárbara punição infligida à Grécia, é a de que o discurso europeísta de reinvenção da União Europeia constitui hoje a pior das ilusões. 

A maioria dos britânicos recusou a permanência num espaço institucional que se tornou uma prisão dos povos e da democracia, e isso impõe-nos a tarefa de avaliar muito bem que oportunidades essa recusa abre a uma política genuinamente democrática. 

Amanhã, no Porto: «As pressões das lideranças europeias sobre a governação portuguesa»


Jantar-debate no Restaurante Alibi, 30 de Junho, a partir das 20h00: «As pressões das lideranças europeias sobre a governação portuguesa», com Ana Drago, Ricardo Paes Mamede e Milice Ribeiro dos Santos. Inscrições aqui. Apareçam.

terça-feira, 28 de junho de 2016

As leituras eleitorais simplistas chegam para explicar o Brexit?

1. Assim que foram conhecidos os resultados do referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia instalou-se uma narrativa que tratou de carregar nas tintas do nacionalismo, da xenofobia e do racismo (apresentados como as principais motivações do voto «Leave» e os grandes vencedores do referendo), sendo amplamente suavizado o significado político-económico dessa escolha (no que respeita à profunda desilusão, mal-estar e descrença no projeto europeu e na governação europeia).

2. Essa narrativa sobre as razões que conduziram à vitória do «Leave» parecia encontrar suporte sociológico na análise dos resultados a partir de variáveis como a idade, o nível de instrução ou as diferenças entre voto urbano e voto rural. Nesses termos (como o João Rodrigues já assinalou neste blogue), o Brexit foi interpretado como a escolha de um eleitorado envelhecido, desinformado, nacionalista, racista e retrógrado, provindo o Bremain de um eleitorado jovem, esclarecido, cosmopolita, adepto do multiculturalismo e progressista.

3. Sucede, contudo, que um inquérito muito difundido nas redes sociais («How the United Kingdom voted on Thursday... and why») desaconselha leituras eleitorais do referendo demasiado simplistas e lineares. Nessa análise, em vez de se tentar deduzir a motivação do voto a partir da sua distribuição segundo a idade, o contexto de vida ou o nível de escolaridade, colocou-se de modo muito direto a questão que verdadeiramente importa: «por que razão votou como votou?». E eis que a «narrativa xenófoba», nos termos em que foi formulada, perde aderência à realidade:


4. De facto, para metade (49%) dos eleitores do «Leave», a principal razão para votar Brexit decorre da perda de soberania política no contexto da pertença à UE. Um argumento bastante mais relevante que o da imigração, associado a apenas um terço desses eleitores (e não necessariamente relacionado com sentimentos xenófobos). Por seu turno, constata-se que a parcela mais relevante (43%) dos votantes no «Remain» não é propriamente entusiasta da UE. Apenas estima que os riscos e impactos decorrentes da saída são superiores aos da permanência. E que, para 31% dos apoiantes do «Remain», sair significa abdicar da situação de privilégio que o Reino Unido tem na UE, onde beneficia do acesso ao mercado único sem ter que submeter a Schengen nem às regras do Euro.

5. Quer isto dizer que a questão da imigração não é relevante? Não, não quer. Não só é relevante como é indissociável, para o melhor e para o pior, do próprio «processo europeu», nos moldes absolutamente trágicos em que o mesmo tem sido desenhado e conduzido, como de resto o João Ramos de Almeida já aqui assinalou. O que não se pode é agitar a questão da imigração (e da sua vertente xenófoba) como sendo a explicação essencial do resultado do referendo e muito menos fazê-lo para afastar os olhares e dissociar esse resultado do desastre europeu, no intuito de proteger e alimentar um otimismo cada vez mais infundado sobre a capacidade de a Europa se regenerar.

6. De facto, quando raspamos o «verniz sociológico» simplista (o tal das linearidades entre voto jovem e multiculturalismo ou entre voto grisalho e aversão aos imigrantes, por exemplo), surge uma teia de questões bastante mais complexa e que se presta pouco a leituras intuitivas. Um idoso que vota a favor do «Leave» tanto o pode fazer por considerar que a Europa deixou de constituir um espaço de internacionalismo progressista e solidário, como o pode fazer por um simples nacionalismo saudosista e xenófobo. Tal como um jovem tanto pode ter votado «Remain» porque continua a acreditar no projeto europeu, como o fazer apenas por não conseguir conceber um enquadramento diferente para a sua vida quotidiana (apesar de reconhecer o fracasso europeu e os danos que o mesmo produz). Como lembrava há uns dias o João Rodrigues, nacionalismos há muitos (e internacionalismos também).

Eu quero viver em Portugal


No meio da turbulência, com as agências de notação em modo ameaçador, a taxa de juro das obrigações do tesouro britânico a dez anos está a níveis historicamente baixos, menos de 1% no mercado secundário, desde o referendo. Parece estranho. Parece. Mas as aparências enganam. A política não pode ser feita com base em aparências.

A dívida britânica é dívida soberana, o Banco Central pode intervir e fá-lo certamente. Os especuladores, no fundo, têm isso em consideração. Sabem que a Grã-Bretanha emite dívida na sua moeda, na moeda controlada pelo seu Banco Central e por isso os títulos são do mais seguro que há em períodos de turbulência. O Tesouro e o Banco Central estão unidos. Uma união que não pode ser quebrada. Nunca haverá incumprimento soberano com dívida deste tipo. Nunca. Never.

Quando um Estado se endivida em moeda estrangeira, como o Euro no nosso caso, dado que o Banco Central não está por cá, a união entre o Tesouro e o Banco Central é quebrada e o incumprimento é uma possibilidade. No nosso caso é uma necessidade para começar soberanamente a mudar as coisas.

O único constrangimento de um Estado monetariamente soberano é o saldo externo, mas para gerir isso lá está, entre outros instrumentos de política, a taxa de câmbio. Eu quero viver num Estado monetariamente soberano. Todos os democratas portugueses têm de querer viver num país com um Banco de Portugal a sério.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Não sendo uma "declaração de guerra", merece uma resposta à altura

No discurso de encerramento da Convenção do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins cometeu um excesso de linguagem para transmitir a mensagem certa.

A recém-eleita coordenadora do BE afirmou que uma eventual decisão da Comissão Europeia de propôr sanções a Portugal seria uma "declaração de guerra". Bem sei que Portugal é um dos poucos países da Europa que não viveu a guerra no seu território no último século, pelo que a maioria não tem a menor ideia do que está em causa. Ainda assim, deveríamos todos reservar estas palavras para momentos em que elas façam sentido (ou seja, desejavelmente nunca).

Deslize de linguagem à parte, a mensagem de Catarina Martins deve ser registada. Tudo indica que a Comissão Europeia (CE) está mesmo a ponderar aplicar sanções a Portugal e Espanha. Isto seria simplesmente inadmissível, tendo em conta as responsabilidades das instituições europeias no desenho do "programa de ajustamento" português e no seu falhanço. Como gesto político, só poderia ser interpretado como absurdo ou provocatório, depois do referendo britânico e do que o seu resultado traduz de crítica à UE. E seria de uma cobardia evidente, tendo lugar apenas após as eleições espanholas.

Uma eventual decisão da CE de propôr sanções a Portugal não pode ser interpretada como uma declaração de guerra. Mas pode e deve ser encarada como o derradeiro sinal de que a UE perdeu o norte. E, como gesto profundamente irresponsável e hostil, só pode merecer a reacção mais determinada da população portuguesa.

Say it again...


Para os leitores do blogue que não tenham o hábito de ler o Jornal de Negócios aqui fica, com duas notas de rodapé adicionais, o artigo que aí publiquei hoje:

Many Thanks to the English Working Class

Peço desculpa ao leitor pelo título em inglês. Sei bem que o inglês e os anglicismos são uma praga evitável. Trata-se apenas de uma singela homenagem à maioria do povo britânico, que teve a coragem de votar pela mudança no referendo à União Europeia (UE). Uma homenagem aos mais velhos, aos mais pobres, às classes trabalhadoras, aos de baixo. É que não é preciso ser instruído para dar uma lição. E que lição esta, a que foi dada às elites políticas, económico-financeiras, aos de cima, numa sociedade causticada pela polarização social e regional, feita de vencedores e de vencidos da globalização neoliberal, o outro nome da UE realmente existente neste continente. Não creio que aprendam alguma coisa, no entanto, a avaliar por tantas reacções arrogantes.

Quem faz esta homenagem vive, como o leitor, na Europa do Sul, neste rectângulo castigado pela austeridade imposta por Bruxelas, numa moeda única que nunca nos serviu, comandada por Frankfurt; vive numa economia estagnada há quase duas décadas, e endividada externamente em montantes recorde, uma combinação sem precedentes históricos. Tudo isto acontece também porque as elites portuguesas aderiram acriticamente à ideia do pelotão da frente, abdicando de instrumentos de política económica num processo nunca referendado. As elites portuguesas dominantes tiveram um papel crucial em transformar Portugal num indicador avançado da chamada estagnação secular, fenómeno que marca o capitalismo nas suas fases mais desiguais e financeirizadas.

Repare o leitor que durante a campanha do referendo britânico, a Europa do Sul, com o seu desemprego de massas, foi invocada por alguns defensores da saída, pelos que tinham boas razões para tal, como o melhor exemplo do que é a UE: uma ordem pós-democrática, que esvaziou a soberania dos parlamentos e que não a substituiu por nada que fosse competente e decente. Os britânicos levam a sério este problema. Chamam-lhe democracia e quiseram recuperá-la de forma mais integral, quiseram ter um maior controlo sobre a sua vida colectiva.

Não se esqueça o leitor que tiveram e têm de enfrentar o chamado projecto medo, comandado por economistas, os mesmos que garantiam antes da crise financeira, iniciada em 2007-2008, que vivíamos na grande moderação, que os mercados financeiros liberalizados eram o alfa e ómega do progresso e que o euro era a boa moeda para a UE (dois terços dos economistas britânicos inquiridos defenderam tal posição em 1999). Este referendo assinalou o merecido descrédito público da economia convencional. Garantiram e garantem que seria o caos. Esqueceram-se que, para os de baixo, o caos é há muito o outro nome das suas vidas.

Tem os dias contados


O povo do Reino Unido decidiu Brexit. Foi um dia histórico porque marca o início do fim da UE.

Pelo que li, há uma grande correlação entre o voto pelo Sair e a condição sócio-económica dos eleitores. Nada para admirar já que o agravamento da desigualdade, a precariedade do trabalho, os empregos com salários de pobreza, a privatização e degradação dos serviços públicos, e de outros de interesse geral (transportes, energia), as dificuldades no acesso à habitação, etc. são o resultado da política neoliberal que os governos trabalhistas e conservadores aplicaram consistentemente nas últimas décadas. Os Tratados da UE, e as suas políticas ao serviço da finança, sempre foram apresentados como o caminho do progresso numa Europa perfeitamente integrada na globalização. As elites neoliberais do RU (conservadores, trabalhistas e outros, de mãos dadas), e a classe média sem dificuldades, estavam do lado do Ficar. Os eleitores "de baixo" não se enganaram quanto aos responsáveis pelo seu mal-estar ("It is the jet-set graduates versus the working class, the metropolitans versus the bumpkins—and, above all, the winners of globalization against its losers").

A imigração desregulada também faz parte do modelo fundador da UE: livre circulação de mercadorias, de capitais... e de trabalhadores. Porém, ao contrário do que previa a teoria económica do neoliberalismo, a desigualdade na UE agravou-se, entre países e dentro dos países. Os da periferia endividaram-se e, encurralados na zona euro sob tutela da austeridade germânica, vão perdendo os seus trabalhadores mais dinâmicos que, por salários muito mais baixos, concorrem com os trabalhadores britânicos (nos anos 50 do século passado, Gunnar Myrdal estudou bem estes processos). Outros, ainda mais periféricos e recém-chegados à UE, fornecem redes criminosas que trabalham na economia paralela do RU. Tudo isto agravado por uma política de laissez-faire no que toca à imigração das ex-colónias, o que permitiu a criação de enclaves étnico-culturais que suscitaram o discurso xenófobo. Recordando os anos trinta do século passado, a estrutura da crise é a mesma: políticas de esmagamento do trabalho e nomeação de bodes expiatórios, nessa altura os judeus, hoje algumas comunidades de imigrantes. Com a participação activa dos economistas (da esmagadora maioria).

O Labour está numa encruzilhada: ou Jeremy Corbin assume em definitivo os anseios das classes trabalhadoras, dos jovens precarizados e das regiões deprimidas, e ainda pode ganhar as eleições no Outono, ou o Labour expulsa Corbyn e iniciará um declínio inexorável. Aliás, o mesmo dilema espera os socialistas de outros países, com destaque para França, Espanha e Portugal.

Tendo em conta que as políticas da UE não serão alteradas no essencial, já que isso é do interesse das elites alemãs e da tecno-burocracia de Bruxelas-Frankfurt, tudo se conjuga para que as tensões sociais e políticas se agravem nos próximos anos. O BCE bem pode continuar a proteger a moeda única nos mercados financeiros, mas seguramente não pode impedir novos referendos nem a eleição de governos de ruptura. O desastroso projecto da UEM tem os dias contados. Os ratos podem começar a abandonar o navio.

domingo, 26 de junho de 2016

A imigração é tudo menos um assunto menor

Dê-se de barato que foi o tema da imigração que motivou o recente terramoto no Reino Unido e que se irá propagar pela União Europeia.

Não é por acaso que os povos migram. Cada caso é uma história, mas talvez se possa olhar para as grandes linhas. Na massa, a imigração é sempre a válvula de escape de um sistema desequilibrado. Seja pela guerra, seja pelas diferenças de condições económicas e sociais. Os números dos gráficos seguintes, juntamente com mais informação, podem ser encontrados no último boletim estatístico sobre os movimentos migratórios no Reino Unido, divulgado pelo organismo estatístico oficial britânico.


Portanto:
1) Não parece ter sido a imigração de fora da UE que está a inundar o Reino Unido. Essa parece estar em recuo desde 2005 e parece estar mais ou menos estabilizada desde 2013;
2) a que está a subir - desde 2012 - é precisamente a imigração que vem da União Europeia.

Olhemos, mais em pormenor:


Ora:
1) A emigração que está a subir é a que vem da Bulgária e Roménia;
2) mas sobretudo dos países de UE15 - Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Irlanda, Grécia, Suécia e Reino Unido (embora se exclua esse grupo). E este grupo U15 tem estado a crescer desde 2012. Em 2015, representavam quase 50% da imigração da UE.

Algum sugestão para esse facto?


Sim, claro. É por "trabalho" que se está a verificar a subida de imigração. Mas a minha pergunta era mais qual a razão porque há mais pessoas da União Europeia a procurar trabalho no Reino Unido?

Pois, lá teremos de voltar a falar de todo o edifício da política seguida desde o rescaldo da crise económica de 2007/8 e que adoptou aquela teoria de que a austeridade iria provocar um milagre económico na União Europeia.

De facto, o milagre já começou. Seguem-se os próximos dentro de momentos.

sábado, 25 de junho de 2016

Como é que se diz depois queixem-se em inglês?


Mas porque é que os velhos não vão morrer longe? Mas porque é que os pobres não se reduzem à sua insignificância social e não calam a matraca desdentada? Mas porque é que os do campo não aceitam que os seus horizontes são estreitos e não desocupam o palco da história? E porque é que a classe operária não percebe que vive numa sociedade toda pós-industrial e financeirizada e que faz parte do passado? Porquê? Isto é o século XXI e este século não é para incultos.

Julgam que estou a brincar, a exagerar? No fundo, anda por aí, e até entre gente que se diz de esquerda, muito disto nas reacções ao referendo, tendo em conta os contornos socioeconómicos do voto. Este século é só para os vencedores, para os que prosperam no meio da estagnação. Eu chamo-lhes lutas de classes, assim no plural, quando me lembro de Karl Marx, e movimento de expansão da globalização liberal e contramovimento de protecção social, quando me lembro do meu outro Karl, o Polanyi. E de que lado estão? Ou julgam que já não há lados?

Entretanto, o europeísmo realmente existente transforma-se facilmente, tão facilmente, na última reincarnação do elitismo e da arrogância de classe. A posição a favor da UE é, como alertou a tempo Gisela Stuart, uma deputada trabalhista que esteve do lado certo pelas razões certas, o melhor “agente de recrutamento do UKIP na Grã-Bretanha”. E como é que se diz depois queixem-se em inglês?

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Uma primeira tomada de posição

O povo britânico decidiu de forma soberana os destinos do seu país. Esse facto não pode senão ser saudado e respeitado, tanto mais que este referendo se realizou num quadro de gigantescas e inaceitáveis pressões e chantagens, nomeadamente dos grandes grupos económicos transnacionais e do grande capital financeiro, bem como de organizações como o FMI, a OCDE e a própria União Europeia. Este resultado é assim, também uma vitória sobre o medo, as inevitabilidades, a submissão e o catastrofismo.

Excerto da clara e corajosa declaração do eurodeputado João Ferreira, em nome dos comunistas portugueses e em contracorrente face à emergente barragem mediática. Espero que não fiquem sozinhos por cá do ponto de vista partidário. As esquerdas não podem abandonar o terreno da soberania que é popular.

Many Thanks to the English Working Class


Por uma vez em inglês. Muito obrigado à maioria do povo britânico. E diz que a classe contou. A partir desta periferia fustigada pelo austeritarismo de Bruxelas, pela arrogância desta elite pós-democrática, acho que é inspirador assistir a esta corajosa votação pela mudança.

 Num discurso na cidade de Manchester, que incluiu uma passagem em alemão e tudo, Gisela Stuart, uma das poucas deputadas trabalhistas pela saída e a primeira a falar do partido, afirmou:

“Este referendo ocorreu num contexto de afirmação do poder das instituições e do dinheiro. Foi dito às pessoas que não tinham outra escolha a não ser permanecer, mas estas votaram pela saída. Temos a obrigação de permanecer calmos e de trabalhar em conjunto. Esta é uma oportunidade para recuperar o controlo democrático das decisões.”

Uma oportunidade. Nem mais, nem menos. Nós também precisamos de uma oportunidade, claro.

Entrevistas


1. «Se houvesse a perceção que a geringonça era efetivamente uma geringonça nos termos em que a direita a classificou, como algo que se pode desfazer a qualquer momento, provavelmente o CDA iria continuar», responde Ricardo Paes Mamede a Paulo Pena (Público), na conversa sobre a decisão de cessar a atividade do CDA, que contribuiu para tornar possível um entendimento inédito entre partidos desavindos, através da criação de «espaços de encontro entre as várias esquerdas».

2. «É claro que no início havia dúvidas (...), mas também acho que essas dúvidas, sobre a solidez e a estabilidade do governo, foram superadas», responde Pedro Nuno Santos à Reuters, aludindo a um dos segredos do sucesso da dita «geringonça»: «as reuniões [entre os partidos que suportam a atual maioria] são sistemáticas e ocorrem constantemente, tem havido centenas delas». O diálogo, a convergência, o debate a partir dos denominadores comuns, essenciais para que «a estabilidade política de Portugal seja hoje uma tão rara quanto agradável surpresa na Europa».

3. «Os efeitos da austeridade foram violentos e desestruturaram profundamente a economia portuguesa», lembra José Reis ao «i», admitindo que «o efeito negativo da austeridade (vamos dizer num trimestre)», possa levar «pelo menos três ou quatro vezes mais (...) para recuperar do "choque"» e qualificando as políticas económicas do Governo como de «recuperação e relançamento», em que «as evoluções positivas começam por servir para absorver estragos, antes de darem resultados positivos consolidados».

quinta-feira, 23 de junho de 2016

The Beatles - She's [not?] leaving home




Truques


Temos de conseguir superar os egoísmos nacionais e regressar a uma Europa social. Agora repitam várias vezes. Muitas vezes. Para lá da estafada associação entre Europa e União Europeia, nesta frase temos dois truques frequentes, e ligados, de um europeísmo que espantosamente ainda persuade muitos intelectuais à esquerda. Supostamente, estes tinham obrigação de saber mais e melhor.

Os dois truques consistem em associar um sentimento perverso à esfera nacional, reservando implícita e por vezes explicitamente para a esfera supranacional europeia uma disposição altruísta, vinculando-a institucionalmente a um suposto modelo social europeu. Na realidade, é mais rigoroso dizer-se que é preciso superar os egoísmos supranacionais e regressar a uma Europa de Estados sociais.

De facto, os Estados sociais europeus, assim no plural, são construções essencialmente nacionais, que tudo deveram às dinâmicas políticas dos espaços onde esteve e ainda sobrevive a democracia. No eixo Bruxelas-Frankfurt, com mais lobistas empresariais do que Washington, estão, isso sim, todos os egoísmos, até porque aí estão concentrados os mais poderosos instrumentos de erosão das solidariedades forjadas na escala estatal pelos povos europeus.

O decadente europeísmo realmente existente está basicamente reduzido a múltiplos truques ideológicos, que servem para ofuscar e que apenas sobrevivem porque continuam a ser repetidos incessantemente por aí, embora, pudera, com cada vez menos convicção.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Riscos de uma democracia centralizada

Ontem à noite, estive no debate organizado pela concelhia de Lisboa do PS, sobre o tratado transatlântico de investimento e comércio (conhecido por TTIP). De um lado, Vital Moreira que, como deputado no Parlamento Europeu (2009-2014), foi presidente da sua Comissão de Comércio Internacional e tem acompanhado as negociações UE/Estados Unidos. Do outro, o economista Nuno Teles, doutorado em Economia pela School of Oriental and African Studies (SOAS), da Universidade de Londres e investigador no CES da Universidade de Coimbra, nosso confrade neste blogue. Pelo meio, estava o actual ministro dos Negócios Estrangeiros. A coisa prometia.

Mas fiquei um pouco assustado. É impossível reproduzir a intervenção bem preparada de Vital Moreira. Mas posso sublinhar a ideia que retive: Não há problema. Todas as reticências em relação ao TTIP, à sua forma de negociação, simplesmente não correspondem à realidade.

E porquê? 1) A comissão europeia tem linhas vermelhas para a sua capacidade de negociação e não vai ultrapassá-las; 2) todos os documentos existentes, negociais, são acedíveis por todos os deputados europeus e nacionais, seja no site da Comissão Europeia, seja no Parlamento Europeu, seja na sala de leitura do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa; 3) caso se chegue a um acordo que ainda está longe ("nada foi fechado"), os tratados terão de ser abordados e aprovados pelo conselho europeu, pelo Parlamento Europeu e ratificados pelos parlamentos nacionais ("não há nada mais democrático"); 4) todos os estudos económicos elaborados até agora vêem vantagens no TTIP e, para Portugal, o valor médio é, na sua velocidade cruzeiro daqui a 20 anos, uma subida de 0,6% do PIB ("Não chega?"); 5) que o TTIP é de suma importância geoestratégica para evitar a dominância da China no comércio internacional (com os seus efeitos niveladores por baixo) e para evitar a recentragem nos Estados Unidos ao Pacífico quando o mercado norte-americano é fundamental para a UE; 6) que quem levanta dúvidas são aqueles que pretencem à “esquerda radical” (sic!), que sempre estiveram contra a UE, contra o euro, contra o comércio internacional (sic!) e que apenas defendem proteccionismo, e que falseiam o debate, sem o mínimo de informação real.

Já nem falo do incómodo que Vital tenha criado – pareceu-me lá – ao ministro do Governo da geringonça.

Limites


O Rui Tavares, já por variadas vezes, usou a linha de "os extremos tocam-se" para criticar as posições dos que, à esquerda, criticam a deriva liberal e autoritária das instituições europeias e colocam em cima da mesa a possibilidade de outros caminhos para a defesa da democracia e do Estado social. Não me alongarei muito sobre isso. O argumento das companhias é imprestável para qualquer debate sério e, convenhamos, aplicado ao RT, coisa que não faço nem farei, também o deixaria em maus lençóis.

Mas, neste artigo, o RT vai mais longe, bem para dentro de uma estratégia grave: co-responsabilizar a esquerda pelo assassinato de Jo Cox, através da sua eventual contribuição para o "ambiente" que o Rui designa como "Cosmofobia" é demais. O debate sobre a Europa é um dos debates decisivos à esquerda e vive bem sem golpes baixos. O RT escreve:

"Basta ver a forma como se ganha votos e aplausos fáceis carregando nas tintas da “chantagem” e da “ingerência” europeia, do “inferno” europeu de que é preciso fugir a todo o custo."

Ora bem, só para citar alguns exemplos frescos na memória, o que a UE fez à Grécia chama-se "chantagem", o que fez no caso BANIF chama-se "ingerência" (e corrupção, já agora) e as experiências de engenharia económica e social conduzidas ou toleradas pela UE em alguns dos seus Estados-membros estão a gerar um ou vários "infernos". Era só o que mais faltava que não se pudesse dar os nomes certos a essas realidades, sob pena de se ser acusado de cumplicidade com um assassino de extrema-direita. Isso, já agora, também é uma "chantagem".

terça-feira, 21 de junho de 2016

Nacionalismos há muitos


O homicídio da deputada trabalhista Jo Cox por um nazifascista marca em definitivo o referendo britânico. Este bárbaro crime serviu já para Teresa de Sousa declarar, pela enésima vez, que não existe um “nacionalismo soft”, isto é, não há nacionalismo que não seja portador dos piores males, da guerra.

No mundo simples de Teresa de Sousa temos identidades assassinas, por um lado, e a bondade europeísta pós-nacional, por outro. Esta bondade não deve ser contestada, através de referendos, por exemplo, não vão os povos na sua irracionalidade reverter a abdicação de soberania, peço desculpa pelo realismo, a partilha de soberania, assim é que é. Além disso, é um susto constante desde pelo menos 1992. É preciso acabar com estes sobressaltos. Olhem para o exemplo do bom aluno Portugal, nunca tivemos disso e vejam como correu bem.

Felizmente, no mundo real, as coisas são mais complicadas, incluindo no que aos nacionalismos, assim no plural, diz respeito: estamos perante um fenómeno político tão ideologicamente polifacetado quanto resiliente. De facto, uma brevíssima passagem pela literatura histórica e sociológica sobre o tema permite concluir que nacionalismos houve e há muitos: liberais e antiliberais, progressistas e reacionários, revolucionários e conservadores, das esquerdas e das direitas, de cima e de baixo, fascistas e antifascistas, imperialistas e anti-imperialistas, racistas e antirracistas.

Num dos livros mais citados de sempre das ciências sociais e humanas, Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson, recentemente falecido, associou o nacionalismo a um conjunto de dispositivos culturais flexíveis e logo mobilizáveis por projectos político-ideológicos muito distintos, sugerindo que a variante popular do nacionalismo teria um potencial inclusivo e democratizador inigualável.

Por cá, um dos nossos especialistas no tema das identidades nacionais, José Manuel Sobral, escreveu no seu livro Portugal, Portugueses: Uma identidade Nacional precisamente o seguinte: “A maioria reterá desses tempos sobretudo as dimensões negativas da paixão nacionalista, ligadas a um racismo de crueldade extrema. Esquecemo-nos que a outra face do nacionalismo - entendido como amor da pátria, como terra própria e dos antepassados e, mesmo, lugar da liberdade e da democracia - contribuiu para sustentar a resistência que venceu o nazismo e os fascismos.”

Venceu o nazismo e os fascismos e venceu, a partir do Sul Global, não o esqueçamos no nosso eurocentrismo, os imperialismos coloniais europeus, ajudando à nossa própria libertação, já agora. E só poderá ser essa face do nacionalismo, ancorada nas classes populares e num compromisso constitucional democrático, a derrotar as duas faces da depressiva e iníqua moeda europeia: a distopia pós-democrática da UE realmente existente, a que reserva para estas periferias um estatuto semicolonial, e os fascismos, os políticos e os sociais.

Ainda por cá, as esquerdas, ou pelo menos parte cada vez mais importante delas, e isto é das poucas coisas em que tenho confiança neste tempos sombrios, nunca cederão à chantagem intelectual, nunca deixarão vago este terreno contestado da imaginação de uma comunidade nacional densa, cimento da construção soberana de instituições igualitárias, em nome de miragens pós-nacionais. Nunca o fizeram na prática. Por que é que logo agora, quando os múltiplos efeitos perversos desta ordem, tão pós-nacional quanto pós-democrática, estão à vista, o iriam fazer?

Adenda ou dois em um. O que eu escrevi sobre o artigo de domingo de Teresa de Sousa aplica-se, com as devidas adaptações na margem, ao igualmente inenarrável artigo de ontem de Rui Tavares, que desceu mais um degrau, rumo ao Reductio ad Hitlerum explícito, tendo razão Daniel Oliveira: “do ponto de vista da retórica, não me recordo de nada mais violento do que associar, mesmo de forma indirecta, os argumentos de um adversário a um assassinato político.”

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Debater o TTIP amanhã no PS


Não sou do PS e não é apenas porque o Nuno Teles foi convidado para intervir. Acho simplesmente fundamental que o PS faça todo o percurso de debate sobre aquilo que será determinante para as nossas vidas futuras e que está a ser negociado sem alguma transparência por entidades não eleitas, como a Comissão Europeia. É amanhã em Lisboa, na Ler Devagar e está aberto às massas.

Claro que tudo poderá ser estorvado com o que acontecer na próxima 5ªfeira no Reino Unido. Mas convém trabalhar em todos os tabuleiros. E sobretudo que o PS estabilize a sua opinião sobre o que se está a passar com este eventual acordo.

Leituras


«Não tendo estado pessoalmente envolvido na polémica dos contratos de associação com as escolas privadas, não me resta senão concluir que o Público desistiu do seu (suposto) dever de informar. (...) Não foi preciso estar lá para perceber, pelas imagens da TV, que a manifestação pela escola pública teve várias dezenas de vezes mais pessoas do que as inacreditáveis 2 mil "noticiadas" pelo Público, e que a manifestação pelos contratos de associação dificilmente terá contado com metade das 40 mil que "noticiaram" na ocasião. Não deixa de ser intrigante que tenha sido também "noticiado" que no palco da manifestação pela escola pública estavam Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, quando todos os relatos que vi, ouvi e li desse evento referem que essas duas pessoas nunca estiveram no palco.»

Eduardo Basto, Notícias?

«O mesmo "Público" que agora quis colocar os seus leitores perante o aflitivo dilema dos 80 mil dos organizadores ou os 15 mil da "polícia" e que, neste comunicado, salienta que a contagem de manifestantes suscita sempre polémica, já aquando da manifestação dos colégios privados assumiu como bons e incontroversos os números fornecidos pelos organizadores e não colocou nenhum dilema numérico aos seus leitores. E, hoje mesmo, na peça da sua página 17, há uma legenda de fotografia que volta à vaca fria e onde se pode ler : "Manifestação foi convocada no mesmo dia em que os colégios levaram à rua cerca de 40 mil".»

Vítor Dias, A direção do Público sopra na palha para esconder o grão

«Tudo tem um contexto. E, no caso da Clara Viana, estamos a falar de uma jornalista que decidiu fazer uma peça (e o seu jornal dedicar meia página da capa ao tema) dizendo que o Tribunal de Contas dava razão aos colégios no diferendo com o Governo. Isto a propósito de um documento de trabalho do Tribunal de Contas com quase dois anos. O resultado é conhecido. O Tribunal de Contas nem duas horas esperou para publicar um (inédito?) comunicado desmentindo o Público. Nesse dia, refira-se, também houve um parecer da PGR que validava argumentos jurídicos do governo. Esse teve duas ou três linhas no Público. Curiosamente, o documento verdadeiro, e que nunca foi desmentido, mal é noticiado.»

Pedro Sales, «Alguns» manifestantes, «demasiados» erros

«Vá, não desviem a conversa. O problema essencial, no que concerne ao episódio jornalístico do fim-de-semana, não é com os números da manifestação (discutíveis dentro de alguma razoabilidade), nem com os/as jornalistas que a cobriram (com direito a errar e a corrigir o erro). É com escolhas editoriais, sentido das prioridades e respeito pelos leitores.»

Rui Bebiano (facebook)

domingo, 19 de junho de 2016

Contra o vírus liberal, pela escola pública, pela provisão pública


Dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se ontem em Lisboa em defesa da escola pública. Aproveito para deixar aqui mais um excerto do artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês sobre as batalhas educativas que temos de continuar a travar:

Dir-nos-ão que o cheque-ensino não é a discussão. A verdade é que se há algo que esta batalha tem revelado é como muitos liberais, dominantes hoje no PSD e no CDS-PP, reconhecem que os contratos de associação nunca passaram de um instrumento, tosco e vulnerável, mas ainda assim um instrumento, para criar o hábito de separar o financiamento, público, da provisão, privada, organizando politicamente, e de forma progressiva, um capitalismo educativo, culminando na institucionalização do cheque-ensino. Pela sua própria designação – movimento em defesa da escola ponto – a expressão de massas possível destes interesses capitalistas educativos pretende precisamente ofuscar a diferença entre formas de organização do sistema de provisão, públicas e privadas, para melhor fazer o que está mais do que teorizado na economia política neoliberal: reconfigurar o Estado para o colocar ao serviço da institucionalização de uma prática e de uma cultura de mercado adaptada às especificidades sectoriais.

Mostrando como a originalidade está sobrestimada num movimento ideológico que vive muito da replicação nacional de ideias que circulam internacionalmente, o PSD de Passos Coelho já tinha dado o fôlego programático possível, bem para lá da educação, ao chamado Estado-garantia, o tal que financia, mas que não provisiona necessariamente certos serviços ditos de interesse público. Este intervencionismo de mercado, que mobiliza sempre um Estado, idealmente suportado por poderes públicos supranacionais pós-democráticos, é o inimigo. Este é o vírus liberal na sua potente reincarnação neoliberal. Este vírus espalha-se na educação sempre que subsidiamos, seja através de contratos, seja através de benefícios fiscais, as moralmente distorcidas preferências elitistas das famílias em matéria de educação privada. Estas têm externalidades negativas para o conjunto da comunidade, por exemplo através da criação de barreiras de classe cada vez mais intransponíveis.

Mas este vírus espalha-se também sempre que descuramos as relações sociais subjacentes à provisão. Isto acontece quando os trabalhadores da educação e os seus sindicatos são tratados como alvos abater, fazendo-se convergir as relações laborais na esfera pública com a maior desigualdade e precariedade que campeia na privada. Isto também acontece quando a lógica cooperativa dos mecanismos democráticos de gestão colegial das escolas é substituída pela lógica do comando empresarial, na figura de um director todo-poderoso, associada à perversa promoção da concorrência entre escolas.

Esta última tendência é igualmente favorecida pelo perigo da crescente municipalização do ensino público no nosso país. A escola, mesmo que formalmente pública, tenderá assim a ficar refém de directores pouco escrutinados e da lógica clientelar de muitos municípios. Em conjunto poderão ter no futuro poder para contratar e despedir pessoal docente e não-docente cada vez mais precário.

O vírus liberal emerge também na selecção e exclusão dos alunos pelas escolas públicas, imitando as práticas das escolas privadas, de acordo com o capital económico e cultural das famílias, determinante no sucesso escolar, ou com as necessidades dos alunos. O reforço da uniformização das escolas – escolas para ricos e escolas para pobres –, num país desigual e com taxas recorde de pobreza infantil, tem de ser travado através de batalhas em múltiplas frentes.

A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. As parcerias público-privadas na saúde ou o cheque-dentista são outros tantos exemplos, desta vez no sistema de provisão de saúde, deste vírus, aí ainda mais potente pelos lucros poderem ser ainda maiores.

As esquerdas que queiram ganhar os debates em torno dos sistemas de provisão de saúde, de educação e de outros não podem perder de vista o projecto global subjacente ao neoliberalismo, recusando a ilusão da liberdade de escolha que alimenta todas as desigualdades. Isto exige argumentos à altura do inimigo. Todas as batalhas têm de ser mesmo educativas.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Contratos de associação: a etapa seguinte

Em 2001, o Ministério da Educação começou a disponibilizar os resultados dos exames, podendo a comunicação social, a partir deles, elaborar rankings de escolas. Em 2012, os resultados passaram a ser complementados com informação sobre o perfil socioeconómico dos alunos, colmatando assim a lacuna que mais minava a credibilidade dos rankings: a ausência de dados de contexto, indispensáveis para interpretar, de forma minimamente séria, os resultados dos exames.

Desengane-se contudo quem pense que o então ministro Nuno Crato pretendia, com a publicação destes dados, melhorar globalmente a transparência dos rankings, enquanto instrumento de avaliação do desempenho das escolas. Não, a informação sobre as habilitações e profissões dos pais e a percentagem de alunos que beneficiam de apoios da Ação Social Escolar apenas passou a ser exigida às escolas da rede pública, ficando portanto todos os privados (incluindo os colégios com contrato de associação) dispensados de fornecer elementos de caracterização de contexto.


Ora, a impossibilidade de relacionar os resultados dos exames com os perfis socioeconómicos dos alunos inviabiliza qualquer comparação credível entre o desempenho das escolas públicas e privadas, legitimando além disso a suspeição de que não havia nenhum interesse em divulgar dados que pudessem deitar por terra a aparente supremacia do ensino particular e cooperativo. O segredo e a opacidade são por vezes a alma do negócio.

Não existindo dados oficiais, apenas se podem fazer aproximações na comparação do perfil dos alunos do ensino público e do privado. O estudo de rede de 2011, por exemplo, dá conta do peso relativo dos alunos com Ação Social Escolar e com Necessidades Educativas Especiais. Se no primeiro caso as diferenças não são muito expressivas (43% no público e 39% nos colégios com contrato de associação), apesar de o estudo sinalizar múltiplos casos de colégios com menos alunos carenciados que as escolas públicas envolventes, o mesmo não se pode dizer relativamente às situações de NEE. De facto, cerca de 1/3 dos colégios não tinha inscrito nenhum aluno com NEE, sendo o valor do ensino público (3,8%) mais do dobro do valor dos privados com contrato de associação (1,6%).


Um outro estudo, da autoria de Manuel Coutinho Pereira (Banco de Portugal), analisou informação dos Relatórios PISA, para concluir - através de vários indicadores - que em regra as escolas privadas escolhem alunos com um perfil mais favorável à obtenção de melhores resultados:


Quer isto dizer que se é legítimo que as escolas privadas selecionem os seus alunos, de modo a poderem disputar lugares nos rankings (imperativo da sobrevivência e do lucro, a competição está-lhes no sangue, faz parte da sua natureza e do seu «modo de vida»), já em relação aos colégios com contrato de associação não é suposto que tal aconteça, uma vez que os mesmos estão vinculados à prossecução dos desígnios da escola pública. Se durante muito tempo a carência de oferta da rede pública relaxou os necessários mecanismos de escrutínio estatal destes colégios, impõe-se que tal não continue a suceder.

Ou seja, para que cumpram efetivamente os seus compromissos com o Estado, aos colégios privados com contrato de associação não basta não serem redundantes em termos de oferta de rede. É preciso que cumpram também (como alguns de resto fazem, exemplarmente) princípios essenciais das políticas públicas de educação: sentido de rede e de contexto, cooperação, igualdade no acesso, fomento da mobilidade social e igualdade de oportunidades para todos. É esse o passo que importa agora dar, resolvida que está a questão das redundâncias.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Continuar a Resgatar Portugal para um Futuro Decente - agora por outros meios

O direito a morrer com dignidade também se aplica às organizações. Foi isso que a Comissão Organizadora do Congresso Democrático das Alternativas (CDA) procurou respeitar.

Lançado no Verão de 2012, no auge da política de austeridade, o CDA surgiu para recusar a tese da inevitabilidade, intervindo não apenas no debate das ideias, mas também na construção de condições políticas para a formação de uma alternativa de governo.

Durante quatro anos dinamizaram-se espaços de encontro, juntaram-se energias e competências, identificaram-se denominadores comuns para uma governação alternativa e, acima de tudo, fomentou-se a ideia da necessidade de convergência entre as forças políticas favoráveis a uma alteração de rumo para o país.

Não se deve apenas ao CDA a criação das condições que viabilizaram a actual maioria parlamentar. Para tal concorreram outras organizações, movimentos e vontades. Neste quadro, o papel do CDA não foi menor. No actual contexto, pouco mais poderia fazer o Congresso que fosse efectivamente relevante.

No entanto, a mobilização de cidadãos com e sem partido, para lá das dinâmicas institucionais estabelecidas, é e será uma condição necessária para que se cumpra o lema do CDA: "Resgatar Portugal para um Futuro Decente".

Sábado, em Lisboa: Pela escola de todas as cores



Depois da entrega de uma petição com mais de 70 mil assinaturas na Assembleia da República, os promotores do movimento de defesa da escola pública convocam uma concentração no Parque Eduardo VII, no próximo sábado, 18 de Junho, a partir das 14h30. Porque a escola pública garante a igualdade de oportunidades e a mobilidade social. Porque a escola pública deve estar no centro das políticas educativas. Porque a escola pública é de todas as cores.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Coragem


“É um Primeiro-Ministro que leva a cabo uma política corajosa e que não foi necessariamente a política pela qual foi eleito”, com “reformas bem mais corajosas do que aquelas que levamos a cabo com a lei do trabalho”. Em visita recente a Atenas, o Primeiro-Ministro francês, Manuel Valls, expôs o programa euro-liberal com toda a clareza, tendo ainda pelos vistos dito que tinha “alguma inveja de Tsipras”.

Pudera, aceitando o protectorado e tendo ignorado o movimento popular, o do Oxi, assim desmobilizado pela desesperança mais do que natural, Tsipras consegue passar no Parlamento toda a legislação regressiva da troika e são milhares de páginas de privatizações maciças ou de redução dos direitos laborais e sociais, a tal política corajosa, a tal UE com a qual pelos vistos alguma esquerda britânica, totalmente desorientada, conta para proteger direitos dos de baixo.

Valls foi, por sua vez, obrigado a usar a figura do decreto para contornar a Assembleia e é confrontado por um notável movimento popular, esse sim corajoso e ainda em crescendo, como se viu esta semana em Paris. No fundo, Valls está só a revelar uma constante das elites francesas dominantes nas últimas décadas, como certa história crítica da integração tem sublinhado: a sua aposta na integração europeia é a aposta num mecanismo disciplinador das rebeldes classes trabalhadoras francesas.

Desculpem insistir nestes temas, mas por aqui e por ali ainda se escreve sobre questões europeias como se estas experiências não existissem, como se não estivessem perante nós. A verdade é que neste quadro estrutural europeu, as políticas social-democratas são uma rematada utopia. Por isso, é profundamente errado falar-se em social-democratização do que quer que seja no campo que conta, o das políticas públicas. Os ventos que sopram de Espanha, e aos quais ainda voltaremos, não estão desligados disto.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Exit, Brexit, Lexit


[A] esquerda britânica corre o risco de prescindir da única instituição que historicamente foi capaz de usar com eficácia – o Estado democrático – a favor de uma ordem constitucional feita à medida dos interesses do capitalismo global e da política gestionária. O desenvolvimento da jurisprudência da UE minou consistentemente opções de política associadas com a esquerda, como a política industrial e as nacionalizações. Estruturas constitucionais que estão em grande medida fora do alcance dos cidadãos tenderam a bloquear o tipo de políticas radicais em que a esquerda tradicionalmente acreditou. (...) Mesmo que os partidos de esquerda europeus fossem bem sucedidos na elaboração de um programa comum, a UE não é o tipo de entidade política que possa ser alterada pela política popular. A UE foi construída para obstruir a política popular. Tal como os bancos centrais independentes e os tribunais constitucionais, as suas instituições são essencialmente tecnocráticas. A tecnocracia, ao contrário do que alguns possam julgar, não é um sistema neutro ou racional de governo. Ao invés, confere imenso poder a órgãos culturalmente selectivos, cujos preconceitos são os da classe a que os seus membros pertencem.

Excertos, por mim apressadamente traduzidos, de um artigo que talvez fosse vantajoso uma publicação de esquerda traduzir integralmente. Da autoria de Richard Tuck, Professor de teoria política em Harvard, e publicado na Dissent, defende a saída britânica da UE pela esquerda, o tal Lexit, expondo a deprimente “racionalização da derrota” da maioria da esquerda britânica, ao arrepio do que foi a sua posição maioritária antes de décadas de um retrocesso que assim corre o risco de continuar. Alterando a fórmula de António Costa, colocando os seus termos no lugar certo, diria que por vezes é difícil ser socialista fora do quadro da União Europeia, mas dentro do quadro da UE é impossível ser socialista.

Entretanto, e já que à esquerda são poucas às vozes a favor do Brexit e que estou numa de tradução, no comentário económico com disposição conservadora temos sempre Ambrose Evans-Pritchard, a favor do Brexit no Daily Telegraph de ontem, com argumentos que vão à raiz do problema político, ou não fosse ele um dos autores do melhor aviso, feito no ano passado, à social-democracia do continente - “podes defender as políticas da UEM ou a tua base eleitoral, mas não podes defender as duas ao mesmo tempo”:

“Para lá da espuma, estamos perante uma escolha fundamental: restaurar o autogoverno pleno desta nação ou continuar a viver num regime supranacional (…) O projecto da UE sangra as instituições nacionais e não as substitui por algo que seja admirável ou legítimo (…) Não tivemos qualquer comissão da verdade e da reconciliação para lidar com o maior crime económico dos tempos modernos. Não sabemos quem é responsável pelo quê, porque o poder é exercido numa interacção nebulosa entre as elites em Berlim, Frankfurt, Bruxelas e Paris (…) Os que mandam também não aprenderam nada com o fracasso da UEM. O fardo do ajustamento continua a recair sobre o Sul (…) Temos pela frente mais uma década perdida.”

Imaginem o que diria se estivessem no Euro...

domingo, 12 de junho de 2016

Como a direita mascarou o desemprego em Portugal



Em mais um vídeo absolutamente imperdível da Geringonça, José Reis explica como a maioria de direita camuflou o desemprego ao longo dos últimos quatro anos, deixando para o governo seguinte uma autêntica bomba relógio. Não deixem de ver.

sábado, 11 de junho de 2016

Um jornal da educação pública


O sistema educativo português vive tempos marcados por uma contradição que merece ser intelectualmente compreendida e politicamente resolvida. A contradição não é inédita nem difícil de enunciar: as escolhas políticas relativas aos ciclos básico e secundário da educação estão a traduzir uma concepção de defesa do ensino público, universal e tendencialmente gratuito; as escolhas políticas relativas ao ensino superior estão a determinar, ou pelo menos a encorajar, uma visão neoliberal, elitista e não democrática do ensino superior.

Sandra Monteiro, Contra-sensos na educação, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Junho de 2016.

Aproveito para deixar um excerto do artigo, Batalhas educativas, que escrevi para o número deste mês:

As esquerdas nacionais têm travado recentemente uma significativa batalha pela educação pública, em torno da limitação do uso e abuso de contratos de associação para financiar a provisão privada de ensino, procurando começar por evitar ilegais sobreposições ali onde existe já capacidade pública instalada. No momento em que escrevo, esta batalha parece para todos os efeitos ganha no campo da política pública. A confiança cresce deste lado e o desespero isola o outro lado, compelido a convocar a União Soviética de Estaline como metáfora histórica tão lunática quanto de duvidosa eficácia política.

No entanto, quero neste momento assinalar algumas preocupações quanto à argumentação mobilizada nesta batalha por alguns sectores das esquerdas, quer em defesa da limitação dos tais contratos, quer na crítica ao adversário na sua versão intelectualmente mais poderosa. Move-me a ideia de que qualquer batalha política tem de ser educativa, no sentido em que a política tem de envolver uma permanente pedagogia popular, capaz de arrastar persuasivamente maiorias para posições socialmente mais justas e democráticas, que nos permitam travar as próximas lutas em melhores condições político-ideológicas. Incluem-se nestas um conhecimento mais aturado do inimigo e dos seus versáteis projectos de classe, em particular no que à organização dos sistemas de provisão, incluindo de educação, diz respeito.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Depositar quatro notas gerais sobre a caixa


1. O governo está planear uma nova injecção de capital público na CGD. Fala-se em cerca quatro mil milhões de euros. Uma das vantagens de um polo público bancário é a maior transparência democrática. O público tem de saber as razões para tal operação e tem de as poder debater com todo o detalhe. É aqui, na escala nacional, que está a democracia e caixa é banco público e logo nacional.

2. Outra das muitas vantagens potenciais de um polo público na banca é poder dar sinais que contrariem esse escândalo que são as remunerações dos gestores de topo, filhas da ideologia do valor accionista ou da ficção de que uma organização complexa depende de indivíduos providenciais. Para lá da fiscalidade, cujas taxas marginais de imposto, de resto, devem poder fixar uma espécie de rendimento máximo para todos, os gestores devem estar sujeitos à lei e à decência mais rigorosas. Alterar as regras para poder pagar salários milionários aos novos gestores da CGD é um detalhe, mas um detalhe vergonhoso e que transmite sinais vergonhosos numa sociedade vergonhosamente desigual.

3. As regras do mercado interno e o poder discricionário que dão à todo-poderosa e toda pós-democrática Comissão Europeia na área dessa ficção a que se chama concorrência não são um detalhe. No que se refere à injeção de capital público na CGD e noutras empresas, estas regras obrigam os Estados a mostrar que tais operações são de “mercado”, ou seja, que seriam idealmente realizadas por um investidor privado. E isto para que não sejam consideradas ajudas de Estado, sujeitas a todos constragimentos em Bruxelas: “se o Estado investir como um investidor privado o faria, bem isso é excelente para nós e, claro, não é Ajuda de Estado”, revelou recentemente a Comissária para a ficção perversa no que à banca e a outros sectores diz respeito.

4. Nisto, como em outras dimensões desta integração neoliberal, é como se os mercados fossem uma espécie de repositório das virtudes, o que dadas as suas falhas, atestadas pelas crises recorrentes, desde que têm rédea concorrencial solta por estas instituições, é uma hipótese mais do que falível. Estas regras impedem uma política industrial e de crédito digna desse nome, traduzindo-se numa forma de privatização furtiva.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 7)


O número 7 da Revista Crítica - Económica e Social, inclui textos sobre muitos dos temas que marcam a atualidade: a situação do sistema bancário e financeiro (Eugénio Rosa, Ricardo Cabral, Francisco Louçã e João Rodrigues); os riscos e as incertezas do Programa de Estabilidade (Eugénio Rosa, Ricardo Paes Mamede, Mariana Mortágua, Eugénia Pires e João Ferreira do Amaral e João Carlos Lopes); o novo estatuto da ADSE (João Semedo e Pedro Adão e Silva); colégios privados e financiamento da Educação (Nuno Serra e José Soeiro); cidades e transporte público (Carlos Gaivoto); a exploração de petróleo no Algarve (Luís Casinhas); as (des)orientações do FMI (Francisco Louçã); e os "Panamá papers" (por António Bagão Félix).

Mais do que em edições anteriores, este número inclui vários artigos originais, que se juntam assim à republicação de textos com diferentes origens. Esta edição da revista Crítica está disponível, para download gratuito, aqui.

terça-feira, 7 de junho de 2016

"O salário mínimo não é de nenhum partido"

Antes de retomar o tema "A Segurança Social não é de nenhum partido", permitam-me falar de outro caso paradigmático de como o governo da direita PSD/CDS usava a concertação social, não para criar efectivos consensos, mas para a usar como câmara de legitimação do que queria.

O tema é o salário mínimo nacional (SMN). E é caso para dizer "O salário mínimo não é de nenhum dos partidos".

Voltemos a Maio de 2011 quando foi assinado o Memorando. O Governo PSD/CDS declarou que era "imperioso" ir mais além para defender a competitividade nacional. O SMN ficou congelado nos 485 euros que já era metade do acordo de 2006 (500 euros). Mas desde então as confederações sindicais foram exigindo discutir o tema e o Governo sempre a chutar para canto. Que ia enviar os estudos. Que os estudos diziam que era mau aumentar o SMN em tempo de recessão, que a troika não deixava, que depois da troika sair se falaria, etc., etc.. E chegamos a 24/9/2014, quando se fechou em reuniões bilaterais - sem a CGTP - um acordo para 505 euros, e parcialmente pago em 15% - e estranhamente - pela Segurança Social. Anormalmente, o SMN vigoria de 1/10/2014 até 31/12/2015 (já depois das eleições).

A 6/10/2014, reúne-se a Comissão Permanente de Concertação Social (CPCS). E partiu-se a louça.

Berra por escrito


Manuel Carvalho, em crónica no Público do passado Domingo, que me ficou atravessada, clama contra uma “forma estúpida de pensar” das esquerdas, em matéria de redução do horário de trabalho na função pública e dos seus potenciais efeitos contagiosos para o sector privado, de resto defendidos pelos sectores sindicais mais consequentes; clama também contra “os estivadores que berram” e que supostamente impedem novas contratações (graças à luta dos estivadores, estas aumentaram, sendo que o trabalho temporário precário foi, e bem, bloqueado em Lisboa); Carvalho clama ainda contra as benesses acumuladas pelos trabalhadores da função pública (o mesmo de sempre, vale tudo para ignorar as verdadeiras desigualdades); todo o seu clamor destina-se supostamente a impedir a mesma “cegueira irresponsável” que culminou, sugere, na ingerência da troika. É caso para dizer que as crónicas de Manuel Carvalho ilustram uma forma de pensar totalmente desprovida de senso e de sensibilidade.

Em primeiro lugar, sugerir, em 2016, que a ingerência externa da troika se deveu a uma “cegueira” de política económica e social é de uma desonestidade ou de uma ignorância atroz. A subida do défice deveu-se à crise, e à virtuosa acção dos estabilizadores automáticos, e não a qualquer surto significativo e deliberado de investimento público. O problema foi a reacção dos mercados numa Zona Euro que subtraiu aos Estados instrumentos de política económica e que não estava preparada para uma crise como a que se iniciou em 2007-2008, para a qual de resto os seus arranjos liberais contribuíram decisivamente. O governo Sócrates já estava em modo austeridade antes do resgate, que aceitou, bem como em modo redução dos direitos laborais (estas tendências acentuaram-se com a troika, com resultados catastróficos, numa economia estagnada desde a viragem do milénio).

Em segundo lugar, Manuel de Carvalho, de forma grosseira, faz demagogia em torno de uma secretária do sector privado e de outra do sector público, em torno das diferenças de horários, procurando concentrar a atenção em desigualdades horizontais, que a luta social sempre contribui de qualquer forma para atenuar, por bom exemplo e por imitação estimulados sindicalmente. Carvalho faz de tudo para que se esqueçam as desigualdades que importam no capitalismo realmente existente: as verticais. E estas até são menores no sector público, que constitui um exemplo. Não é aliás por acaso que, da Troika ao Banco que não é de Portugal, se esforçaram para que os cortes salariais, directos e indirectos, no sector público contagiassem o sector privado e para que as maiores desigualdades salariais no sector privado, por sua vez, contagiassem o mais igualitário sector público. É ao contrário que temos de fazer. E para fazer ao contrário é necessário o empoderamento dos trabalhadores, como até a investigação do FMI confirma: trata-se sempre de um processo que ocorre a diferentes velocidades, sendo os seus feitos igualizadores cultivados, como temos defendido, por organizações que encarnem os interesses comuns do mundo do trabalho assalariado.

Enfim, o artigo de Manuel Carvalho é apenas a enésima destilação do ódio de classe, mesmo que em versão social-liberal, contra a tímida recuperação organizada dos trabalhadores depois da devastação dos últimos anos. Carvalho berra por escrito, ampliando a mensagem dos que assim não precisam de elevar a voz. Se depender da maioria dos que transaccionam ideias em segunda mão, certas fracções do capital, as mais medíocres, falarão sempre mais alto.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

"A Segurança Social não é de nenhum partido" - 1

É tão fácil jogar com o esquecimento das pessoas. E o problema é que o intervalo entre os factos e o momento em que se joga com o seu esquecimento está a despudoradamente a encurtar cada vez mais.

A 23/10/2013, o governo PSD/CDS colocou à discussão das confederações patronais e sindicais, na Comissão Permanente da Concertação Social, o projecto de proposta de lei que alterava a lei de bases da Segurança Social para subir a idade de reforma para os 66 anos a partir de 2014 e aprofundar o factor de sustentabilidade, ao considerar o ano 2000 como ano de referência inicial da esperança média de vida aos 65 anos.

Na altura, o ministro da Solidariedade, do Emprego e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, frisou que o Governo estava consciente da dificuldade em pedir mais sacrifícios às pessoas, mas que “não se sai da crise que vivemos sem ser com mais trabalho”. E, consciente dessas dificuldades – não só aos pensionistas, mas às empresas que tinham de manter os trabalhadores idosos por mais tempo – disse que “o Ministério reuniu com o Comissário Europeu que tutela [o programa] a Garantia para a Juventude e conseguiu um pacote de apoios de 300 milhões de euros para iniciativas que assegurem aos jovens até aos 30 anos oportunidades formativas ou profissionais e está a avaliar a medida Impulso Jovem com vista à sua reformulação”. Ou seja, menos pensões e mais precariedade profissional para os jovens.

A alteração era justificada pela degradação das contas da Segurança Social que, por acaso, tinham sido duplamente prejudicadas pela política de austeridade seguida pela troika e pelo governo PSD/CDS: menos receitas (por causa da destruição de 400 mil postos de trabalho entre 2011 e 2013) e mais despesas (com o subsídio de desemprego, mesmo assim insuficiente para compensar o enorme aumento do desemprego. "A economia não tem evoluído positivamente", dizia o ministro.

O interessante é que todas as confederações – sindicais e patronais – estiveram contra. A UGT lembrou até que o acordo tripartido de 2011 fora assinado no compromisso de não se mexer na idade de reforma e no factor de sustentabilidade. E que “se a UGT tivesse tido conhecimento dos acontecimentos agora em discussão não teria assinado o Acordo”. A CGTP até lembrou que "a Segurança Social é dos parceiros sociais e o Governo não pode passar à margem e tomar decisões unilateralmente".

Apenas a CIP achou por bem negociar, propondo que, para resolver aquela quadratura do círculo, a “solução global” seria “a reativação do regime da flexibilização da idade de reforma e a reequação do estrangulamento que constituem as quotas para acesso ao subsídio de desemprego nas revogações por mútuo acordo”. Ou seja, legalizar despedimentos até então ilegais.
Mas a discussão era apenas para tornar legítima a alteração legal. Os pareceres contrários das confederações de nada serviram. E a lei seguiu o seu percurso e está em vigor.

Pois passados três anos, temos o mesmo autor desta alteração a dizer que “ninguém é dono da Segurança Social” e que tudo deve ser feito em consenso. O PSD está a tornar-se num partido sem vergonha nem princípios, volátil às pequenas rabanadas de vento. Mas neste momento, Passos Coelho apenas pretende agarrar-se ao mais pequeno tufo de giesta, que lhe dê a ilusão de um palco, antes de cair no precipício do esquecimento geral.