terça-feira, 4 de novembro de 2008

Furacões, pêndulos e a economia como ciência social


Há dias, Nicolau Santos abria a sua coluna de opinião recorrendo a uma metáfora: “Não é fácil, quando se está no meio de um furacão, acreditar que, por mais violento que seja, vai acabar por passar” (Expresso/Economia, 11 Outubro). Na primeira página do mesmo caderno, Daniel Bessa também comentava a crise e começava assim: “Desde que há capitalismo, há crises económicas. Nada de novo, portanto, no que se está a passar.” O leitor menos informado é assim levado a pensar que o enorme cortejo de sofrimento humano que vem associado à falência das empresas/famílias e ao desemprego tem algo de inevitável, como acontece com os grandes desastres naturais.

Em tom menos dramático, Helena Garrido no Visto da Economia lembrou-se da metáfora do pêndulo para interpretar a actual crise: “O pêndulo foi levado longe de mais na desregulamentação e liberalização. Como antes tinha sido levado longe de mais nas nacionalizações e regulamentação. A tentação é grande, infelizmente, para levar também agora o pêndulo longe de mais na regulamentação e nacionalização - em linha com a lei da física.”

Neste caso, a metáfora é conveniente para os que nunca puseram em causa o neoliberalismo e, agora, pressentem que uma mudança estrutural pode estar a ocorrer no Capitalismo. Permite-lhes encontrar um meio-termo confortável e sem memória. Que limites para a amplitude das oscilações do pêndulo ? Tenderá para o equilíbrio ? Na realidade, o recurso a metáforas provenientes da Física até é consistente com o paradigma dominante na Economia. A lei geral da atracção dos astros de Newton foi a metáfora fundadora do modelo Walrasiano do Equilíbrio Geral, um dos pilares da ortodoxia.

Embora a Economia não possa prescindir do uso de metáforas e analogias inspiradas por outras ciências – em rigor, qualquer ciência necessita da linguagem e esta é por natureza metafórica – o certo é que esses recursos têm armadilhas que os economistas não devem subestimar.

No texto de Helena Garrido, a metáfora do pêndulo está associada à ideia de que no Ladrões de Bicicletas já se antevê o fim do Capitalismo. Sendo assim, o Socialismo seria construído (ex-novo) sobre os escombros de um Capitalismo em crise terminal. E recuperávamos o Gosplan? Voltávamos ao que se chamou em dada altura “capitalismo de Estado”? Não tenho a certeza de que seja isso que pensa a respeito dos Ladrões, mas alguma coisa me diz que Helena Garrido não entende os nossos textos. Vou tentar ser claro.

Quando falamos de regulamentar e (em alguns casos) de nacionalizar, trata-se de recorrer aos instrumentos que melhor submetem os mercados ao interesse público. Esta crise tornou bem evidente a urgência de uma re-institucionalização da economia, começando desde já pelo sistema financeiro, para que funcione ao serviço das sociedades contemporâneas. Stiglitz ilustra bem o que quero dizer com “re-institucionalização”:

“Muitos bancos centrais conduzem-se de acordo com a ideia de uma inflação-alvo – a de que devem ter por alvo apenas a inflação, aumentando as taxas de juro sempre que a inflação aumenta. Mas eu diria que os bancos centrais têm uma responsabilidade mais ampla; espera-se deles que assegurem a estabilidade da economia do país. Enquanto as autoridades monetárias dos EUA e de outros países [incluindo a Zona Euro] se preocuparam com a estabilidade dos preços, permitiram que o sistema financeiro assumisse riscos que prejudicaram o conjunto da economia.” [o destaque é meu]

É isto. Queremos uma outra regulamentação (incluindo nacionalizações, quando adequado) que reduza drasticamente quer a instabilidade inerente ao sistema Capitalista quer as desigualdades de rendimento, logo na repartição primária. Aos leitores da esquerda que não se satisfazem com este reformismo recordo que neste blogue se discute Ciência Social, e em particular a sub-disciplina Economia Política. A crença numa futura sociedade perfeita, o Comunismo, de que o Socialismo seria uma etapa inicial, instaurado por ruptura absoluta com o Capitalismo, é isso mesmo ... uma crença. Acontece que aqui não discutimos religiões.

Aquilo que eu designo por socialismo ir-se-á construindo num processo democrático que faça prevalecer o interesse público sobre os interesses particulares. Confronto de projectos políticos, participação cívica alargada, debate com os interessados e deliberação transparente são essenciais num processo de socialização dos mercados que, necessariamente, recorre a diferentes tipos de propriedade e diferentes formas de gestão das empresas. Assim como a empresa privada e o mercado não são as únicas formas de organizar a economia, também "socializar" a economia não quer dizer "estatizar" a economia.

Karl Polanyi identificou uma tensão inerente ao Capitalismo a que chamou "duplo movimento": por um lado, os actores dominantes na economia pretendem reduzir o trabalho humano, a moeda e a natureza a mercadorias; por outro lado, o resto da sociedade defende-se tentando conter os efeitos desagregadores decorrentes daquele projecto. As variedades de capitalismo que conhecemos são o resultado do modo como em cada sociedade aquelas tensões foram estabilizadas (institucionalizadas).

Assim, estruturas e dinâmicas sociais são ao mesmo tempo resultado e causa das lutas e pactos entre grupos sociais com interesses, ideias e projectos diferentes. Períodos de turbulência, em que a acumulação de mudanças graduais de diferente natureza faz emergir novas qualidades na economia, e nas suas relações com o resto da sociedade, integram-se neste entendimento do Socialismo como processo. Estaremos num desses períodos de "aceleração" da História? Apenas podemos formular hipóteses.

Uma coisa é certa. O “duplo movimento” teorizado por Karl Polanyi – uma explicação para a dinâmica do Capitalismo que, aplicada aos nossos dias, também tem limitações – escapa à metáfora do pêndulo, ainda que sejamos tentados a usá-la. É que o tempo das sociedades é histórico, produz ao mesmo tempo continuidade e novidade, não é repetitivo como o da mecânica!

3 comentários:

Manuel Rocha disse...

Leitor atento, considero este um dos textos melhor conseguidos do Ladrões.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Essa de dizer que uma ruptura absoluta com o capitalismo é uma religião nem lembra ao filho do diabo mais velho.
E como é possível haver uma ruptura absoluta dum sistema?

Anónimo disse...

Pois, é o tal problema inevitável das ciências sociais.
Como analisamos a sociedade e a sua história, quais os seus pressupostos e as diferentes conclusões a que chegamos.
Considerar que o materialismo dialéctico é uma religião é contrariar os fundamentos das ciências sociais. Considerar a inevitabilidade histórica como uma crença é cair na armadilha do «pêndulo». Sim do tal pêndulo que uns consideram invisivel... mas com os resultados que estão à vista para milhões de desempregados e de pobres.

Ricardo