domingo, 17 de maio de 2009

Evoluir até a extinção

Por trabalhar num centro de investigação multidisciplinar (o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) tenho o previlégio, sendo economista, de poder conversar com colegas biólogos. Verifico assim que a ideia de evolução como evidência de desígnio racional, ou de optimalidade (seja ao nível do comportamento individual, seja ao nível das propriedades do sistema ou da sociedade) é tão absurda para (pelo menos alguns) biólogos como o é para mim.

O argumento de Friedman utilizado para salvar a "racionalidade económica" e a “concorrência perfeita" da extinção é absurdo. E no entanto continua a ser muito influente no género de economia que continua a ser ensinado, quase sem contraditório, nas nossas faculdades.

Mas a história não acaba aqui. Friedman achava que saber se os pressupostos de uma teoria são ou não verosímeis, era uma questão irrelevante. O que interessava era saber se, na realidade, as predições da teoria se verificavam ou não. O teste da teoria fazia-se pelas predições e só podia ser ciência um conhecimento que desse origem a predições testáveis que se verificassem não serem falsas.

Isto suscita dois problemas para Friedman – um relacionado com a Biologia, outro com a sua Economia. A Biologia (penso saber) não faz predições. De acordo com os critérios de Friedman a Biologia não seria ciência. Então porquê evocar a sua autoridade para “validar” hipóteses da Economia? A Economia de Friedman, em contrapartida faz muitas predições. Frequentemente erra. Para não ir mais longe lembremo-nos dos mercados financeiros eficientes. E no entanto, continua a ser ensinada como ciência.

Evolução como evidência de racionalidade? Absurdo. Uma espécie pode evoluir até à extinção, sobretudo se não existir variedade na sua população. Algo de semelhante pode acontecer à Economia. A Economia neoclássica foi seleccionada, a disciplina perdeu diversidade.

O processo nada teve de natural, pelo contrário, o que contou mais uma vez foi o poder e as instituições. Mas já que estamos em maré de metáforas biológicas, aqui vai mais uma: com esta evolução a Economia corre o risco de extinção.

15 comentários:

Dias disse...

Excelente e com ironia q.b.!

Sempre me pareceu abusiva a extrapolação linear das teorias da selecção natural entre as espécies e da sua evolução, a uma delas a quem se chamou Homo Sapiens (Sapiens, por alguma razão).

Um Homo Sapiens “mais capaz” que as restantes espécies, que depois de as ir paulatinamente aniquilando, se voltaria para os seus pares?
Um Homo Sapiens mais “escorpião” que Homem, afinal ao arrepio do “conatus” que sabiamente Spinoza percebera no tempo…?

É nesse protótipo de Homo Sapiens - uma leitura enviesada de Darwin- que uma certa economia (Friedman) pretende alicerçar-se, acabando por justificar com naturalidade a inevitável desigualdade até às últimas consequências, e mesmo a extinção?!

cs disse...

Vou lendo este blog e acho que nunca tinha comentado.

Não que o meu comentário vá ser de grande reflexão. mas é com toda a certeza sentido.

excelente texto. Achei

para quem n entende nadica de economia e é apenas uma curiosa cientifica (este termo é giro, gostei)e vai vendo a forma como se vai gerindo algumas instituiçoes publicas com estatudo meio privado, onde se vão vendo disparates iguais aos que faliram empresas nos últimos 10 anos é um excelente texto sim.

:)

L. Rodrigues disse...

A Biologia faz predições.
Richard Dawkins, por exemplo, prevê que, a haver vida complexa noutras partes do Universo, ela também evolui por selecção natural.

Quando se descobre uma espécie desconhecida, fazem-se uma série de predições sobre a mesma. Depois são testadas e ajudam a classificar a dita espécie.

Na verdade é o método cientifico e nada mais que isso. Formulam-se hipóteses (predições) e testam-se.

André Moz Caldas disse...

Formular hipóteses e fazer predições dificilmente são conceitos equivalentes.

Francisco disse...

É sempre refrescante constatar que existem economistas com um mind-set fora do mundo maniqueísta e imediatista dos gestores.

Aos amigos libertários costumo dizer que o Mercado existe agora, sempre existiu - e os resultados são os que se vêm na história e no presente.

e já agora.. a biologia faz muitas previsões e é muito testável. Até diria que o é bem mais que a economia.

L. Rodrigues disse...

Ainda assim, faz:
a biologia permite predizer a acção dos venenos, do comportamento dos bicho depois das chuvas numa floresta, a percentagem de uma certa mutação numa população, conhecendo o genotipo dos progenitores... E podíamos estar aqui a noite toda.

Que não possa prever um percurso ou designio para a evolução é outra coisa. Porque isso implicaria prever algo que não existe.

CS disse...

Caro J.M Castro Caldas,

Antes de mais permita-me felicitá-los pelos textos.
Eu tive há algumas semanas uma discussão interessante com docentes da Univ. do Minho que advogavam, apoiados numa tese do Nuno Garoupa que se a economia neoclássica tinha sobrevivido, é porque "num processo de selecção" fora capaz de suplantar as restantes.
Do meu ponto de vista, a sobrevivência da economia neoclássica nas universidades tem alguns aspectos evolucionistas e alguns aspectos institucionalistas complementares aos que refere. Na óptica institucional, o estabelecer do publish or perish e o domínio dos chamados top journals por corpos editoriais neoclássicos criou as condições para fomentar o enveredar de um jovem investigador por essas vias. A partir daí a meu ver, é essencialmente o conceito de rotina que está em causa. A rotina torna difícil a ruptura epistemológica uma vez sedimentados hábitos de investigação ao longo de certas linhas. Enfim, o link para o último texto produzido nesse debate fica aqui:
http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/04/keynes-regulacao-e-etica-o-novo-papel.html
se achar interessante.

L. Rodrigues disse...

Agora que pensei um pouco mais sobre o assunto, uma análise do sucesso evolucionista da economia neo-clássica requer que olhemos para a coisa com olhos de biólogo, e o que os meus olhos de biólogo dizem é que o sucesso de uma espécie é sempre contextual. Ou seja, é dependente do ambiente em que se encontra.

E poucos podem questionar que, pelo menos a partir de certo ponto, o sucesso da E.N-C. foi fortemente favorecido por um ambiente mais do que propício.

Agora o que é de perguntar é se não houve "inteligent design" desse ambiente. Há quem não duvide disso.

José Magalhães disse...

Marx, numa primeira leitura, adorou Darwin e recomendou a leitura da "origem das espécies" a Engels. Engels achou que Darwin tinha sido ingénuo ao importar a teoria de Malthus (inspirada em Hobbes),na sua teoria da evolução, na medida em que a sobrevivência do mais forte é que determinaria a evolução. No entanto, sabe-se hoje que há fenómenos como a simbiogénese que são igualmente importantes na evolução das espécies. Vejam aqui (http://borntobewilde.blogspot.com/2009/04/sobre-darwin-e-evolucao-marx-engels.html) e aqui (http://borntobewilde.blogspot.com/2009/04/sobre-darwin-e-evolucao-sintese.html)

João Pedro Santos disse...

Não sou particular admirador de Milton Friedmna mas quem quiser conhecer o seu pensamento sobre a ciência e o método científico deve fazê-lo lendo o que ele próprio escreveu (ver por exemplo, http://nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/1976/friedman-lecture.pdf) e não se ficar por versões simplificadas e distorcedoras expressas pelos seus detractores.
Embora o fulcro da questão não seja a capacidade de fazer previsões mas sim de formular hipóteses testáveis (o que não é exactamente a mesma coisa) há pelo menos algumas áreas da biologia, como por exemplo a genética, em que é possível fazer (e fazem-se)previsões.

José M. Castro Caldas disse...

Obrigado a todos os comentadores. Já percebi que o meu "a biologia não faz predições", deve no mínimo ser qualificado, ficando algo como o que L. Rodrigues escreve: "Que não possa prever um percurso ou designio para a evolução é outra coisa. Porque isso implicaria prever algo que não existe."

Mas lá que a apropriação de Darwin por Friedman é teleológica, lá isso...

Stran disse...

Excelentes dois artigos.

Julgo que Darwin deve ser dos cientistas mais revolucionário, mas também mais mal utilizados na história da humanidade.

Já serviu politicamente para justificar o "Darwinismo social" com as consequências que se sabem.

E na economia a mesma coisa. Pior é criar processos de intenções onde eles não existem.

E porque é que me parece que a "mão invisivel" é apenas uma alegoria para a "acção de Deus"?

Anónimo disse...

"Evolução como evidência de racionalidade? Absurdo."

É lá, onde isto já vai!!!

Não concordo com essa afirmação.
Não concordo com dizer-se que a Biologia não é uma ciência.

Método científico, oblidgesBruxaria, religião, etc é que são ciências?

Tudo que no real ou numa apresentação não considere que as conclusões devem ser um reflectir dos objectivos propostos, não merece a minha disponibilidade.

O problema é que a vida, a economia real, não tem as rotas bem definidas, nos objectivos e nas conclusões. No entanto, lá procuramos no dia-dia, cada um como pode e sabe.


Não sermos capazes de fazer a estroboscopia, apresentação da economia, de todos os aspectos da vida, não nos faz diferentes de objectos de estudo, como a Física, a Biologia, a Química, isto claro, sempre auxiliadas pela famigerada matemática.

miscara disse...

Sou a bióloga "híbrida" que trabalha com este "outro" economista. J.M., parabéns. Iniciaste uma boa conversa.

Deixo apenas alguns contributos:

A biologia não faz predições para classificar; primeiro agrupa os indivíduos em espécies com base numa generalização das características que observa; depois identifica novos indivíduos como pertencendo às espécies pré-estabelecidas. Podemos aplicar o conhecimento generalizado ao novo indivíduo, mas não podemos prever exactamente o seu comportamento porque: 1) há variabilidade intra-espécies; 2) o sistema de classificação não é feito para prever uma dada característica, antes reflecte os critérios do "classificador" (taxinomista) e a sua forma própria de ver o mundo; 3) o comportamento depende do ambiente. As espécies novas de microrganismos que descobri foram "criadas" com base em critérios morfológicos e genéticos. A sua capacidade de produzir toxinas depende dos indivíduos e do seu ambiente. Claro que quando apanho cogumelos num bosque, confio nas minhas capacidades de identificar os comestíveis e espero que eles se "comportem" como os seus comparsas... Mas viver é mesmo isto: lidar com a incerteza e conhecimento incompleto.

Agora, a selecção da razão? Acreditar que os que chegam "ao fim da linha evolutiva" foram os melhores, os mais sábios, ou mais "racionais"? Esse é o complexo do sobrevivente ao contrário. Acreditamos que aqueles que morreram no World Trade Center eram os menos aptos? Que os sobreviventes de catástrofes são os mais aptos? A evolução opera por caminhos imprevistos. A selecção natural é um dos mecanismos. Mas nem toda a sobrevivência é devida ao mérito. Penso que (alguns) economistas concordarão comigo.

Agora, se a biologia é ciência e segue um método? Da minha experiência de 7 anos de investigação, digo que o melhor método é a inquisição céptica, o poder de observação e uma mente aberta para evoluir nas nossas ideias. Esse meus amigos, é o melhor contributo que Darwin nos podia ter deixado.

Anónimo-Anterior [ainda na senda da evolução] disse...

citando Pascal: O coração tem razões que a própria razão desconhece.


Apesar da sociedade não ser feita por pensadores. Não posso deixar de medir, comparando, a nossa atitude no mundo, perante
os restantes animais. E é por aí que acho que evoluímos, sendo racionais, somos distintos, dos irracionais.

E depois a natureza, já nas suas formas mesmo microscópicas, vemos que hoje ultrapassa de longe toda a capacidade racional, do comum mortal,
o que sugere, que nos falta, domesticar os nossos comportamentos em virtude de alcançar essa organização, da mesma forma
que hoje por exemplo, nós cheiramos, tacteamos, degustamos, observamos e porque não ouvimos, sem pensarmos muito naquilo que estamos fazendo, e é sobretudo nisto que eu deposito a minha garantia do contributo da evolução. Uma barreira outrora, mas que mais tarde seja possível transpor.