sexta-feira, 3 de maio de 2013

Mitos sobre o Estado e a economia em tempos de austeridade

«A crise tornou clara a relação entre a situação financeira das famílias e a situação económica do país. Com efeito, a rápida expansão do crédito em Portugal e o crescimento das taxas de endividamento das famílias portuguesas ao longo das duas últimas décadas estiveram sempre associadas a níveis bastante baixos de incumprimento. As maiores dificuldades só começaram a sentir-se com as medidas de austeridade geradoras de desemprego, promotoras de cortes salariais no setor público e de aumento da carga fiscal sobre a generalidade dos trabalhadores.»

Ana Cordeiro Santos, Temos vivido acima das nossas possibilidades?

«Ao fazer um paralelismo entre uma família e o Estado, [o discurso austeritário] não só ignora todas as diferenças entre uma economia doméstica e uma economia nacional, como negligencia o corte em despesas supérfluas para defender, em alternativa, o corte nas despesas com o Estado social. Ao defender-se a austeridade como saída da crise, ignora-se o facto de a própria austeridade ser um fator de aprofundamento e agudização da crise.»

Ricardo Sequeiros Coelho, Gerir um país é com gerir uma casa?

«Numa empresa, trabalha-se em geral para ganhar a vida. A empresa produz valores de troca muitas vezes desprovidos de qualquer sentido que não seja a acumulação de dinheiro por parte de quem investiu dinheiro. Num organismo da administração pública ganha-se a vida e pode servir-se a comunidade. A ética de serviço público - termo atualmente caído em desuso - continua a ter uma força motivacional capaz de explicar a dedicação de muitos profissionais da escola pública, do serviço nacional de saúde e de diversos outros serviços públicos, apesar dos maus tratos e humilhações a que têm estado sujeitos.»

José Castro Caldas, O Estado deve ser gerido como uma empresa?

«Diz-nos o senso comum que as pessoas honradas cumprem os seus compromissos, pagam as suas dívidas. Aliás, o senso comum diz-nos mais. Diz-nos que as pessoas honradas não têm dívidas. São, sem dúvida, úteis conselhos de sobrevivência e convivência: ajudam-nos a evitar o sobreendividamento ou a tentação da fraude. Mas revelam-se primariamente inúteis, e mesmo prejudiciais, quando aplicados a situações mais complexas da vida ou, pior, a escalas infinitamente maiores, como o Estado ou a economia.»

Mariana Mortágua, Temos de pagar a dívida?

Referência a mais quatro capítulos do livro «Não acredite em tudo o que pensa - Mitos do senso comum na era da austeridade», que está, desde hoje, disponível nas livrarias. Quatro textos, em torno de algumas das mais importantes ideias falsas sobre o Estado e a economia, de mitos que foram preparando a opinião pública para a aceitação resignada da austeridade e dos desígnios «inevitáveis» do «ajustamento». Ideias cuja sobrevivência continua a ser decisiva para, acima de tudo, dissimular o verdadeiro plano que está em curso (e que logo cumprirá mais uma etapa): a destruição do Estado e dos serviços públicos e a imposição de um modelo económico sem prosperidade, nem dignidade nem futuro (nos seus próprios termos), que nos conduzirá ao empobrecimento e à miséria sem fim.

6 comentários:

Anónimo disse...

Quando um país apresenta durante muitos anos sucessivos deficits externos na balança corrente na casa dos 10% do PIB (que em termos relativos são dos maiores do mundo), é sem duvida um país que vive acima das suas possibilidades.
E, quando esse país deixa de ter financiamento externo para cobrir os sucessivos deficits da balança corrente, só tem duas alternativas: aumentar exportações, ou diminuir importações.
Dado que aumentar as exportações na casa dos 10% do PIB não é fácil, e demora anos, só resta então reduzir abruptamente as importações.
Ora, infelizmente para reduzir as importações abrutamente numa economia aberta só há uma solução: reduzir abruptamente os rendimentos (salários) da população.
- Será assim tão dificil perceber isto?
- Se escrevi algo errado agradeço que me corrigem.

R.B. NorTør disse...

Ou então negociar condições que lhe permitam em simultâneo crescer e pagar o que deve, mesmo que para isso em alguns anos tenha de só pagar juros.

Não acredita? Veja este documento: http://www.weltvertrag.org/e375/e719/e989/AgreementonGermanExternalDebts1953_ger.pdf

Anónimo disse...

Caro amigo RB NorTor:
O meu comentário pretendeu responder à pergunta da Ana:"Vivemos acima das nossas possibilidades?".
Quanto ao seu comentário permita-me salientar que no meu texto reporta-se ao deficit da balança corrente ( basicamente, exportações menos importações)e não ao deficit publico (O.E.) - são elementos diferentes.
Enquanto que para equilibrar o deficit publico ajuda muito existir crescimento, tal não sucede no caso do deficit da balança corrente. Pelo contrário, se o crescimento for essencialmente induzido pelos sectores produtivos destinados ao mercado interno (exemplo: construção civil)a balança corrente tende ao desequilibrio. Pois, muito embora, este tipo de crescimento provoque os aumento do emprego, dos rendimentos e da receita fiscal, simultaneamente também provoca o aumento do consumo, e por conseguinte das importações - não compensadas por "novas" exportações.
....
Se por hipotese Portugal conseguisse eliminar o deficit publico, mas mantivesse o deficit da balança corrente na casa dos 10% do PIB, o endividamento do sector privado português perante o exterior continuaria a crescer.

Francisco Torres disse...

Então e a "Ana" não comenta?...quem pouco percebe de economia fica no vazio...e o SrºAnónimo não tem T...para se identifica?

Francisco Torres
Professor da Escola Sec. de Estarreja.

José M. Castro Caldas disse...

É dificílimo perceber o que diz o Anónimo acima.
Primeiro, ter um défice corrente de 10% não significa necessariamente consumir acima das possibilidades. Pode significar e significa que o país, com a abertura à concorrência internacional no quadro da UE, a convergência de preços para a média da EU e a taxa de câmbio exagerada do euro, deixou de ter condições para concorrer no mercado interno com a produção importada. Continuou a consumir a mesma fatia do PIB, mas passou a importar mais. Financiou tudo isto com o crédito abundante e barato oferecido pelos bancos dos países virtuosos que tê como “ideal” acumular excedentes correntes à custa de terceiros.
Segundo, é também dificílimo perceber para que serve reduzir o défice corrente, se a redução das importações é conseguida à custa de uma recessão que aumenta o peso da dívida no PIB, arruinando o país e tornado a dívida impagavel.
Terceiro, é dificílimo perceber, como é que ideias económicas tão erradas continuam a dominar as crenças de muita gente depois de estar à vista o seu resultado.

Anónimo disse...

Caro professor Castro Caldas:

a) Independentemente das causas terem sido o euro, os bancos, os governos, ou outras, é um FACTO que Portugal teve sucessivos deficits de conta corrente - dos mais elevados do mundo (em % do PIB)- durante demasiados anos.
b)Lembro que uma parte substâncial das nossas importações vem de países da zona euro, e uma outra parte substâncial da mesma são produtos petroliferos.
c) É dificílimo perceber o "ideal" dos países "virtuosos": andarem à acumular sucessivos excedentes correntes, financiados por credito oferecido pelos seus bancos, correndo um crescente risco dos devedores entrarem em incumprimento, e não lhes pagarem - possivelmente devem gostar de dar umas borlas;
d) É dificílimo perceber porque Portugal não tem o mesmo ideal dos países virtuosos - por os bancos portugueses a oferecer credito e acumular excendente corrente à CUSTA! de terceiros.
e)Contrariamente ao repetido por muita gente nos meios de comunicação, talvez que a causa principal da nossa ruína actual não seja o deficit publico (despesa publica), mas sim o deficit da balança corrente - pois,
supondo que, em vez de termos acumulado deficits, tivessemos antes acumulado enormes excedentes na balança corrente: neste contexto, muito provavelmente estariamos em condições de financiar os nossos deficits publicos com base na poupança interna, não precisando de troikas e afins, e teriamos meios próprios para impulsionar a procura interna, o crescimento e as receitas fiscais.