quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Duas escolhas necessárias... e suficientes?


Comentário ao contributo do José Maria Castro Caldas:

Um Governo que queira falar de uma rotura com a política de austeridade tem de estar disponível para dois atos de soberania política: (a) uma restruturação da dívida que possa responder simultaneamente aos problemas do endividamento público e do endividamento externo e (b) a rejeição do Tratado Orçamental que, não apenas fixa um critério absurdo para o saldo estrutural, como fixa mecanismos de ajustamento draconianos, quando esse e outros critérios (como o da dívida) não forem cumpridos.

Estes dois atos são imprescindíveis e estão associados.

Por um lado, a restruturação da dívida proporcionará uma maior margem de manobra para a condução da política orçamental através da redução dos encargos com a dívida, mas parece-me impensável que esse alívio seja suficiente para cumprir o Tratado Orçamental e ainda empreender o esforço contra-cíclico indispensável para assegurar a inversão da trajectória da nossa economia.

Por outro lado, a rejeição do Tratado Orçamental por si só não resolve os problemas de financiamento que o nosso nível de endividamento já suscita e que seriam agravados num contexto de conflito com as instituições europeias. De pouco serve recusar as regras do Tratado se não tivermos acesso ao financiamento necessário para as políticas públicas. O financiamento futuro é, aliás, uma das questões que terá, em qualquer caso, de ser acautelada num processo de restruturação da dívida conduzido pelo devedor.

Mas uma outra questão mais inquietante é a de saber se estes dois atos de soberania que, por si só, representam uma enorme confrontação com as instituições europeias existentes, são suficientes para lidar com os problemas da nossa inserção na zona Euro.

O autor explica no seu texto a centralidade da questão do endividamento externo na dinâmica de divergência e desagregação dentro da Zona Euro. Na realidade, o reequilíbrio recente da nossa balança corrente é inseparável do aumento do desemprego e da degradação do poder de compra da generalidade da população, e só nesse sentido é que pode ser considerado uma vitória da política de austeridade. Daí decorre um problema: uma política que reponha rendimentos e gere emprego, sendo indispensável para a recuperação da nossa economia e para a própria qualidade da democracia, tenderá a aumentar a procura e trazer de volta os défices externos. Não é razoável pensar que a reconversão da nossa economia possa resolver este problema em tempo útil, pelo menos no quadro atual das instituições e políticas europeias e depois de terem sido alienados instrumentos fundamentais para políticas públicas no plano nacional.

O que esta armadilha expõe é o problema constitucional europeu. A disfuncionalidade das instituições europeias é agravada pelo carácter irreformável de muitas das suas regras e disposições. Esse bloqueio institucional significa que é ingénua a ideia de que o normal funcionamento das instituições europeias poderia alguma vez desencadear as transformações necessárias, se é que estas ainda são possíveis e ainda podem colher apoio popular.

Em tempos em que os euro-entusiastas estão em vias de extinção em quase todo o continente, e perante o imobilismo da burocracia europeia, parece-me que, se há esperança para o projecto europeu, ela só pode nascer da insubordinação, de preferência multilateral, dos Estados e dos povos que se encontram sob ataque. Mais vale cedo do que tarde.

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