quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Esponjas sobre o passado

Há dias tornou-se pública a intenção do governo de discutir o direito dos trabalhadores a desligar o telefone ao seu empregador fora do horário de serviço.

O ministro Vieira da Silva disse estar atento à discussão internacional, mas remeteu o assunto para a contratação colectiva.

Uma fonte oficial disse: “Esta é, por excelência, uma matéria que pode ser negociada no âmbito da contratação colectiva, sem prejuízo de poder ser debatida com os parceiros sociais no âmbito da CPCS”.

Ora, este tema tem todo o ar de ser um assunto perigoso.

A lei é clara e define o que é tempo de trabalho e tempo de descanso. Comunicações de serviço são trabalho e como tal devem ser tratadas. Os tribunais devem respeitar a lei e nada é necessário para clarificar este aspecto.

Mas à boleia das novas tecnologias, da robótica - que permitem um contacto mais próximo e variado entre empregador e empregado, entre assalariados responsáveis e subordinados - é possível que se esteja a abrir um capítulo em que a contratação colectiva venha a impor condições mais recuadas e prejudiciais aos trabalhadores, à sua vida, à vida social, do que a própria lei. E isso é possível desde que se criou o Código do Trabalho em 2003.

Até já se vem dizer que, muitas vezes, é do interesse do próprio trabalhador atender, porque se mostra disponível ao empregador e isso pode ser útil para a sua progressão na carreira... Ou seja, parece que não há progressão na carreira sem prolongamento não remunerado do horário de trabalho.

Ora, o problema das clarificações à lei é que, em geral, quando isso acontece, representa como se uma verdadeira esponja passasse sobre eventuais conflitos que possam estar a ser dirimidos em diversas sedes. Se a lei precisou de ser clarificada é porque antes não era clara. O passado ilegal é então limpo e tudo se arruma apenas para o futuro. Este tipo de estratagema legal já aconteceu muitas vezes em questões fiscais com alterações à lei, introduzidas no Orçamento de Estado. E à sua boleia fizeram-se autênticos perdões fiscais encapotados a contribuintes graúdos que estavam em litígio com a interpretação legal da Autoridade Tributária. E o Governo passou por ter sido um defensor dos princípios e das regras, mostrando-se duro com os poderosos...

Outra hipótese - em caso da clarificação legal ser mais penalizadora para o trabalhador - é servir de guião de leitura da própria lei actual, aquando de uma decisão sobre casos passados. Faz-se tábua rasa do passado e passa a vigorar o futuro.

Por isso, muito cuidado com assuntos que parecem tão aliciantes para a defesa do trabalhador.

9 comentários:

Geringonço disse...

Nada de novo, e tal como a Uber, a reboque da pseudo-modernidade o antigo esclavagismo reergue-se.

A Mitsubishi anda a ser investigada no Japão por abusar dos trabalhadores.

Os abusos ao trabalhador são uma pandemia que nem os países mais avançados escapam.

Em Portugal, é este o exemplo que o Estado dá:

Escolas vão contratar tarefeiros a 3,49 euros à hora

http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/escolas-vao-contratar-tarefeiros-349-euros-hora-108434

Se não lutamos contra isto estamos feitos...

Anónimo disse...

O retrocesso civilizacional é uma realidade, a única resposta razoável é o confronto, o lado mais fraco continua a acreditar que é através de acordos que vai conseguir equilibrar e garantir princípios elementares de justiça. Estamos numa altura em que a maioria das discussões só servem para fazer passar a ideia de que alguns vão ter de ser sacrificados, isto é inaceitável e indecente.

Jaime Santos disse...

Muito bem observado. Mas nesse caso, o que se deverá fazer é uma verdadeira alteração da Lei. E tratando-se de Direito Civil e não Criminal, mesmo que o regime fosse no limite mais favorável para o Empregador (e o objetivo do Governo seria o contrário), tal não afetaria o julgamento de casos passados, segundo julgo saber.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Jaime,
É verdade. Também acho que deveria ser assim. E acho que os juízes deveriam ter essa noção muito clara. Mas as coisas andam tão fluidas...

Anónimo disse...

Andam as coisas tão fluidas e os tempos também.

Por isso a vigilância impõe-se. "O retrocesso civilizacional é uma realidade, a única resposta razoável é o confronto" como dizia um anónimo aí em cima. "Se não lutamos contra isto estamos feitos..." dizia por sua vez o Geringonço

E os tempos vão aquecer. Afinal aquela coisa chamada Luta de Classes existe mesmo e quem a está a ganhar são mesmo os que exploram os demais

Jose disse...

O que mais me surpreende nestas matérias é este permanente apelo às leis e aos tribunais e nada que conduza ao estabelecimento de um proletariado capaz de uma autodefesa a nível da empresa - posso garantir que as empresas dependem dos seus trabalhadores e prezam um colectivo sem amarguras.
Mas é tentação permanente dos 'guias' do proletariado que sejam configurados como coitadinhos a precisarem de pastoreio e cães-de-guarda.

Quanto ao que ao tema mais diretamente diz respeito tudo se faz tendencialmente pela negativa: há que impor proibições ou como no caso garantir blackouts.
A 1ª revolução industrial e os seus fumos ainda povoam as mentes dos bravíssimos esquerdalhos.

Que tal dizer que o trabalho solicitado e voluntariamente prestado fora do horário de trabalho ou do regime de trabalho extraordinário constitui o trabalhador num crédito de horas … que assim se regulamenta.

Anónimo disse...

"Autodefesa operária", diz um que até bufava quando confrontado com um caso paradigmático exposto pelo João há dias.

Este é o mesmo que preza tanto a Lei e a Ordem, que faz convites ao uso do cacete quando as coisas lhe fogem da sua condição ideológica. Mas que esconde por baixo do tapete a condição legal quando esta afronta a sede de lucro do patrão

E vem com esta choraminguice piegas escondida atrás da conversa dos "coitadinhos" e do pastoreio e dos caes-de-guarda. Veja-se ocmo se agita e como baba face a quem defende os interesses do trabalho. E os fumos e as mentes da escravidão assaltam-lhe o cérebro em sonhos humidos de saudades incontidas

Crédito de horas....a estabelecer com o patrão.. e a serem pagas em géneros alimentícios para os canídeos que este tem em casa?

Que tristeza

Jose disse...

Pois claro que os 'coitadinhos' não são voluntários para nada.
Segundo os cretinos de serviço, só interrompem a luta de classes para cumprir o CCT!

Anónimo disse...

"Os "coitadinhos" não são voluntários para nada" ?

Que mistério esconde tão misteriosa afirmação? Os "coitadinhos" serão crismados desta forma por não obedecerem às ordens de voluntários à força emanadas por parte do das 00 e 01 e das 20 e 01? Um assumido arauto da Lei e da Ordem (e do Cacete) mas que nestas coisas entre patrão e trabalhador prefere usar o "voluntariado" ao serviço do Capital, escondendo debaixo do tapete a condição legal e as chantagens sobre o trabalho?

E torna-se patético, embora simultaneamente cómico o desvario de quem brama pelos "cretinos de serviço". Confirma assim nesta sua prosa malcriada que existe mesmo luta de classes. E que simultaneamente os CTT o incomodam e sempre o incomodaram.

Eis o retrato desesperado e desesperante de quem defende os interesses de quem explora. O ataque de nervos que o acomete derivará do sereno post de JRA e dos comentários que desmascaram o seu não inocente porfiar?